Miguel Reale, homem do Direito, da Filosofia e das Letras, em razão de
seu ofício, possuía decerto uma vasta biblioteca. E é sobre ela que lança um
olhar consternado, imaginando o seu destino depois que, neste mundo, já não
estivesse.
Duas foram as imagens que se me mostraram indeléveis depois de lido o
poema: o livro, de pé, como soldado montando guarda para a próxima consulta, e
a profusão de cupins, traças e baratas, rendilhando
um poema sem poesia – neste caso, porque demarca a finitude de tudo quanto na
terra existe. Afinal, nem mesmo a memória se estabelece no domínio da
eternidade...
J.A.R. – H.C.
Miguel Reale
(1910-2006)
A Biblioteca
Morto, a biblioteca
projeta a sua imagem,
um livro fechado,
para sempre
encerrado,
sem novos títulos ou
capítulos,
mas com mensagens
a seus discípulos.
Já é outra a
biblioteca,
sem vida interior,
na orfandade
de seu amor.
Obras a pouco e pouco
coligidas,
gota a gota de
amorosa escolha,
a existência toda
resumida
em amareladas folhas
e, num instante,
a pena da saudade em
cada estante.
Sobre a mesa um
volume
com páginas marcadas,
feridas abertas,
sinais de não
aproveitadas
descobertas.
Neste livro
com espanto
via-se um dia:
um poema pequenino
por encanto
descobria-se.
Neste outro, de sua
lavra,
sentia o peso da
palavra:
uma palavra a mais
uma palavra a menos
e outro teria sido o
seu destino.
Mas não mais terá a
dor
que o atormentava
tanto,
remorso do não lido
ou treslido,
sem igual amor.
Madrugadas e noites
lidas,
linha a linha,
linhas das palmas da
mão
dirigidas para o
incerto,
a partir da solidão.
Na sombra se oculta o
exército
de cupins, traças e
baratas,
roendo indiferentemente
livros de ciência e de
filosofia,
de arte e de atas,
rendilhando todo um
poema
sem poesia...
– Ar! Luz!
grita o sol vibrando
na vidraça
mas é tarde, é muito
tarde,
quase noite na
biblioteca
que cheira a mofo e
naftalina,
não tem cheiro de
criança,
não tem cheiro de
menina.
Dentro dela sós
lembranças.
Passa o tempo e o
livro fica
em fila, de pé,
como soldado montando
guarda
ao que não é.
A biblioteca
remanesce
soberana ao tempo que
passa
e tudo que perece,
indiferente ao sol,
aqueça ou não a
vidraça.
Chega a noite à
biblioteca
e alça igual seu voo
o pássaro de Minerva.
Na Biblioteca
(John Watkins Chapman: pintor inglês)
Referência:
REALE, Miguel. Na biblioteca. In: CONGÍLIO, Mariazinha (Selecção e Coordenação). Antologia de poetas brasileiros. 1. ed. Lisboa, PT: Universitária Editora, 2000. p. 150-151.
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