Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Lisboa retratada em sonetos por seus poetas

Lisboa pagã, cristã, moura, visigótica, portuguesa, marítima, loura, morena, dos azulejos pintados, do Rossio, Alfama, Chiado e Mouraria. Lisboa, antes de tudo, do Fado, esse padrão musical ultramelancólico, transigente, fatalista, sua marca registrada.

Mas Lisboa por todos amada, e tanto mais por seus poetas, de cujos trabalhos foram selecionados oitos sonetos, a maioria dos quais no formato visual padronizado de versos (4+4+3+3), outros inovando-o para (4+4+4+2), embora mantendo as suas quatorze linhas.

A emoldurar a distribuição dos poemas, uma sequência de belíssimas pinturas da artista russa Elena Petrova Gancheva, que, pelo que se obtém pela grande rede, reside ou mantém estúdio em Santo Amaro de Oeiras, Portugal.

J.A.R. – H.C.

Visão de Lisboa a Partir do Tejo

Lisboa
(Alberto d’Oliveira)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 23)

Ó Cidade da Luz! Perpétua fonte
De tão nítida e virgem claridade,
Que parece ilusão, sendo verdade,
Que o sol aqui feneça e não desponte...

Embandeira-se em chamas o horizonte:
Um fulgor áureo e róseo tudo invade:
São mil os panoramas da Cidade,
Surge um novo mirante em cada monte.

Ó Luz ocidental, mais que a do Oriente
Leve, esmaltada, pura e transparente,
Claro azulejo, madrugada infinda!

E és, ao sol que te exalta e te coroa,
– Loira, morena, multicor Lisboa! –
Tão pagã, tão cristã, tão moira ainda...

Mosteiro dos Jerônimos

Lisboa
(Alberto de Monsaraz)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 52)

Lisboa, há quantos séculos menina,
Moça eterna, que o tempo nunca ameaça;
Não sei de graça igual à sua graça,
De ar como esse ar com que Ela nos fascina.

Atlântida talvez, grega, latina,
Visigótica, moura... tanta raça
De pagãos e de heréticos que passa
Por Ela, se seu prestígio não declina!

Baptiza-se no Tejo... então, mais bela
Ainda, entre as mais belas se revela:
– Portuguesa, marítima e cristã.

Madrugada de Fé no mar, na terra...
Sobre o teu Sol a noite não se cerra,
Lisboa: há quantos séculos manhã!

Surpreendente Lisboa

Guião para Santa Apolónia
(Vasco Graça Moura)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 146)

entre correntes de ar, numa estação
de caminho de ferro, parte alguém
e alguém está achegar e tudo sem
se avistarem por entre a multidão.

fica o destino à solta, mas refém
de ironias do acaso e da emoção
e descuidos do tempo e da razão
nos trilhos apressados de ninguém.

ou por passarem anos, por ser vão
usar adversativas: mas, porém...,
por várias lembranças que também
desencontradamente vêm e vão

na roda da fortuna, quando quem
assim ia passando estava à mão.

Torre de Belém

O Chiado
(Gomes Leal)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 184)

Quem vai a algum museu de zoologia
vê empalhados animais estranhos,
vê orangos de todos os tamanhos,
contempla os reis de toda a bicharia.

O estrangeiro que aporte aqui um dia,
e pretenda estudar lusos engenhos
frequente praias e estações de banhos,
– o Chiado, a Avenida, a Mouraria.

Instale-se sobretudo no Chiado,
e fumando um bom bréva de cruzado,
trincando no Baltrésqui um pão de ló...

verá o ramo único e curioso
do Macaco celtibero famoso:
– o Símio – hipocondríaco – liró!

Esboço Urbano de Alfama

Já as primeiras cousas são chegadas
(Natália Correia)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 185)

Tanta foice isto é coice desconfio...
Tanto de marx martelar já cansa.
Adrede é labirinto não me fio
no fio que o comício ao coro lança.

De tanto ruminar tanto Rossio
numa canga aguilhando tanta esperança.
Tanto poder ao povo com feitio
de espezinhá-lo depois da governança.

Tanta denúncia. É a pedagogia
da Revolução que o excremento avia
e não chegámos ao último terceto.

Recém-nascida apenas deste em cabra
Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,
não sei como acabar este soneto.

Vista dos Monumentos da Parte Velha de Lisboa

A Guitarra da Mouraria
(Gomes Leal)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 226)

Amo a tua guitarra, ó Mouraria,
em que um dóer mourisco nos desola,
e as almas, sob a lua, acaricia,
como da Alfama a passional viola!...

Bem galantes solaus também carpia
Severa, essa Ninon de naifa e mola.
Mas há sangue em teus ais!... Tua magia
quantas vezes não traz a Cruz e a Estola!

Vai alta a lua. – Após a cavatina,
Almaviva, com zelos de Rosina,
dá seis golpes na amásia, com furor.

Almavia é marujo e de melenas.
Prisões, guitarras, ais, céu de açucenas.
– Surge a Polícia... e prende, em fralda, o Amor.

Belém e os Jerônimos

Junho
(Fernanda de Castro)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 231)

Vermelho como um cravo de papel,
redondo como o bojo dum balão,
o sol, entontecido e folião,
entorna claridades cor de mel.

Aclama o povo em chusma, em aranzel,
Santo António, S. Pedro e S. João...
Manjericos passeiam mão em mão...
Há fantoches na feira e um “carroussel”.

Mal se apaga a fogueira do Poente
novas fogueiras brotam do chão quente,
e a festa continua, salto em salto...

Gritam apitos, gemem as guitarras,
e o povo esquece e faz como as cigarras,
e dança e canta cada vez mais alto.

Vista Panorâmica de Alfama

Trazias de Lisboa
(Manuel Alegre)
(TORGAL; BOTELHO, 2000, p. 288)

Trazias de Lisboa o que em Lisboa
é um apelo do mar: um mais além.
Trazias Índias e naufrágios. Fado e Madragoa.
E o cheiro a sul que só Lisboa tem.

Trazias de Lisboa a velha nau
que nos fez e desfez (em Lisboa por fazer).
Trazias a saudade e o escravo Jau
pedindo por Camões (em Lisboa a morrer).

Trazias de Lisboa a nossa vida
parada no Rossio: nau partida
em Lisboa a partir (Ó glória vã
não mais não mais que uma bandeira rota).

Trazias de Lisboa uma gaivota.
E era manhã.

Monumentos de Belém

Referência:

TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea de poesia sobre Lisboa. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000.

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