Lisboa pagã, cristã, moura, visigótica, portuguesa, marítima, loura,
morena, dos azulejos pintados, do Rossio, Alfama, Chiado e Mouraria. Lisboa,
antes de tudo, do Fado, esse padrão musical ultramelancólico, transigente,
fatalista, sua marca registrada.
Mas Lisboa por todos amada, e tanto mais por seus poetas, de cujos
trabalhos foram selecionados oitos sonetos, a maioria dos quais no formato
visual padronizado de versos (4+4+3+3), outros inovando-o para (4+4+4+2),
embora mantendo as suas quatorze linhas.
A emoldurar a distribuição dos poemas, uma sequência de belíssimas pinturas
da artista russa Elena Petrova Gancheva, que, pelo que se obtém pela grande rede, reside ou mantém estúdio em Santo Amaro de Oeiras, Portugal.
J.A.R. – H.C.
Visão de Lisboa a Partir do Tejo
Lisboa
(Alberto d’Oliveira)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 23)
Ó Cidade da Luz!
Perpétua fonte
De tão nítida e
virgem claridade,
Que parece ilusão,
sendo verdade,
Que o sol aqui feneça
e não desponte...
Embandeira-se em
chamas o horizonte:
Um fulgor áureo e
róseo tudo invade:
São mil os panoramas
da Cidade,
Surge um novo mirante
em cada monte.
Ó Luz ocidental, mais
que a do Oriente
Leve, esmaltada, pura
e transparente,
Claro azulejo,
madrugada infinda!
E és, ao sol que te
exalta e te coroa,
– Loira, morena,
multicor Lisboa! –
Tão pagã, tão cristã,
tão moira ainda...
Mosteiro dos Jerônimos
Lisboa
(Alberto de Monsaraz)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 52)
Lisboa, há quantos
séculos menina,
Moça eterna, que o
tempo nunca ameaça;
Não sei de graça
igual à sua graça,
De ar como esse ar
com que Ela nos fascina.
Atlântida talvez,
grega, latina,
Visigótica, moura...
tanta raça
De pagãos e de
heréticos que passa
Por Ela, se seu
prestígio não declina!
Baptiza-se no Tejo...
então, mais bela
Ainda, entre as mais
belas se revela:
– Portuguesa,
marítima e cristã.
Madrugada de Fé no
mar, na terra...
Sobre o teu Sol a
noite não se cerra,
Lisboa: há quantos
séculos manhã!
Surpreendente Lisboa
Guião para Santa Apolónia
(Vasco Graça Moura)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 146)
entre correntes de
ar, numa estação
de caminho de ferro,
parte alguém
e alguém está achegar
e tudo sem
se avistarem por
entre a multidão.
fica o destino à
solta, mas refém
de ironias do acaso e
da emoção
e descuidos do tempo
e da razão
nos trilhos
apressados de ninguém.
ou por passarem anos,
por ser vão
usar adversativas:
mas, porém...,
por várias lembranças
que também
desencontradamente
vêm e vão
na roda da fortuna,
quando quem
assim ia passando
estava à mão.
Torre de Belém
O Chiado
(Gomes Leal)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 184)
Quem vai a algum
museu de zoologia
vê empalhados animais
estranhos,
vê orangos de todos
os tamanhos,
contempla os reis de
toda a bicharia.
O estrangeiro que
aporte aqui um dia,
e pretenda estudar
lusos engenhos
frequente praias e
estações de banhos,
– o Chiado, a
Avenida, a Mouraria.
Instale-se sobretudo
no Chiado,
e fumando um bom bréva de cruzado,
trincando no
Baltrésqui um pão de ló...
verá o ramo único e
curioso
do Macaco celtibero
famoso:
– o Símio – hipocondríaco – liró!
Esboço Urbano de Alfama
Já as primeiras cousas são chegadas
(Natália Correia)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 185)
Tanta foice isto é
coice desconfio...
Tanto de marx
martelar já cansa.
Adrede é labirinto
não me fio
no fio que o comício
ao coro lança.
De tanto ruminar
tanto Rossio
numa canga aguilhando
tanta esperança.
Tanto poder ao povo
com feitio
de espezinhá-lo
depois da governança.
Tanta denúncia. É a
pedagogia
da Revolução que o
excremento avia
e não chegámos ao último
terceto.
Recém-nascida apenas
deste em cabra
Ó Liberdade! Não sei
como isto acaba,
não sei como acabar
este soneto.
Vista dos Monumentos da Parte Velha de Lisboa
A Guitarra da Mouraria
(Gomes Leal)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 226)
Amo a tua guitarra, ó
Mouraria,
em que um dóer mourisco nos desola,
e as almas, sob a
lua, acaricia,
como da Alfama a
passional viola!...
Bem galantes solaus
também carpia
Severa, essa Ninon de
naifa e mola.
Mas há sangue em teus
ais!... Tua magia
quantas vezes não
traz a Cruz e a Estola!
Vai alta a lua. –
Após a cavatina,
Almaviva, com zelos
de Rosina,
dá seis golpes na
amásia, com furor.
Almavia é marujo e de
melenas.
Prisões, guitarras,
ais, céu de açucenas.
– Surge a Polícia... e prende, em fralda, o Amor.
Belém e os Jerônimos
Junho
(Fernanda de Castro)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 231)
Vermelho como um
cravo de papel,
redondo como o bojo
dum balão,
o sol, entontecido e
folião,
entorna claridades
cor de mel.
Aclama o povo em
chusma, em aranzel,
Santo António, S. Pedro
e S. João...
Manjericos passeiam
mão em mão...
Há fantoches na feira
e um “carroussel”.
Mal se apaga a
fogueira do Poente
novas fogueiras
brotam do chão quente,
e a festa continua,
salto em salto...
Gritam apitos, gemem
as guitarras,
e o povo esquece e
faz como as cigarras,
e dança e canta cada
vez mais alto.
Vista Panorâmica de Alfama
Trazias de Lisboa
(Manuel Alegre)
(TORGAL; BOTELHO,
2000, p. 288)
Trazias de Lisboa o
que em Lisboa
é um apelo do mar: um
mais além.
Trazias Índias e
naufrágios. Fado e Madragoa.
E o cheiro a sul que
só Lisboa tem.
Trazias de Lisboa a
velha nau
que nos fez e desfez
(em Lisboa por fazer).
Trazias a saudade e o
escravo Jau
pedindo por Camões
(em Lisboa a morrer).
Trazias de Lisboa a
nossa vida
parada no Rossio: nau
partida
em Lisboa a partir (Ó
glória vã
não mais não mais que
uma bandeira rota).
Trazias de Lisboa uma
gaivota.
E era manhã.
Monumentos de Belém
Referência:
TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO,
Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea de poesia sobre Lisboa. Lisboa,
PT: Publicações Dom Quixote, 2000.
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