Tudo é motivo de remissão neste longo poema de Ivo: a natureza, a arte, a
História, a bolsa de valores, o espaço urbano, as estruturas ministeriais, em
suma, a órbita do humano encerrada no “novo glossário do mundo”.
O poema gira à volta do percurso contingente do eu lírico, que parece
buscar os contrafortes de sua própria identidade, confrangida entre polos
antitéticos de onde espera extrair a síntese possível, mesmo à custa de
desilusões pelas promessas que não se cumpriram.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
Finisterra
Ando na multidão e o
meu nome é Ninguém.
Na cidade que cheira
a peixe podre
e gasolina e
demagogia
pisado pela tarde vou
roçando as escamas
das paredes que cosem
a minha dor.
Sob este céu vinagre
sugado por turbinas
um vômito de cifras
me estonteia.
Levo na maresia o meu
amor de homem
e ninguém sabe que
amo a não ser os cães
que farejam meus
passos pelas alamedas.
No auditório do medo
o meu fervor responde
a um estridência de
pedras desmoronadas
e nas galerias ouço
escorrer
o meu amor de água; e
o meu amor de flor
brota nos quiosques
pálidos e atravessa
as pedreiras e
miçangas do dia enfeitado
de ráfia amarela e
branca.
Ó dia, altar dos
homens, curral de mármore!
As reses se aproximam
tontas do abatedouro
e a sombra do meu
querer calcina as calçadas.
Os dias são rufiões
ocultos nos balcões
onde ninguém paga os
juros de minha alma.
E este amor que me
suga enquanto eu sugo
o sumo oculto na
gruta insensata
abre uma cratera
entre os regos e rochas
da terra que me nutre
em seus peitos de pó.
As paliçadas da
incerteza se levantam e isolam as torres
onde se revezam as
sentinelas que espiam na treva
a chegada dos
pelotões invisíveis.
No caminho entre o
viaduto e o motel
vou quando venho...
Partida e chegada
são quimeras do
horizonte e grasnar de gaivotas
que irritam os
burocratas na alfândega.
E caminhando pelo Rio
vivo de todos os assombros
rede que na treva
encontra um cardume de sardinhas
homem que atrás do
sol e da alegria se defronta
com os terraços
cinzentos da amargura.
A hora faz uma curva
de luz para que eu passe
entre os milionários
os padres os lixeiros e os palhaços
e as prostitutas que
são o
meus semelhantes.
Aqui os bancos são
mais belos que as catedrais.
E, cabisbaixos,
confiamos aos gerentes os nossos pecados:
cobiçamos a mulher do
próximo; e sua mansão; e seu escravo;
e seu iate; e seu boi
e jumento;
e suas debêntures,
e o sol de sua
piscina.
Comungamos nos
guichês. E quando a Bolsa cai
nossas almas monetárias
tremem.
Entre o terror e o
telestar
e a formiga que sobe
a escadaria do Ministério da Fazenda
sinais luminosos se
formam. Ó novo glossário do mundo!
Adeus ó velhas
palavras que não significam nada
e por um momento
boiam nas latrinas.
Como os cemitérios de
automóveis, os museus
guardam a sucata.
A arte de hoje está
nos tapumes,
nos cartazes que
anunciam liquidificadores.
Ó diálogo das
constelações, ó sintaxe planetária!
Com as palavras
dementes que aprendi na escola
e gastas como as
solas dos sapatos
já não sei cantar o
mundo nem dizer meu amor.
E o meu silêncio come
um pão cozido
nos fornos da
mentira.
Ó dia sem lábios
ó dia cheio de
escamas como um peixe
que nada em minha
jaula
dize-me que céu
guardou o grito de Elpenor!
Onde está a sepultura
de Nabucodonosor?
Canta para mim, ó
Musa, o varão industrioso Nick Carter...
Onde encontrarei
todos esses velhos túmulos
com suas lápides
partidas e epitáfios
escritos na língua
antiga dos mortos?
As trombetas ressoam
na esplanada de Elsinor.
Os leões de granito rugem
na manhã.
E pisando as palavras
amarelas de um outono amarelo
como o corpo de
Cristo
vou na multidão de
boa lacrada.
Sou um homem isolado
dos outros homens
que caminham como se
já estivessem mortos.
Nos parques de
estacionamento a luz da tarde queima
a relva que me separa
dos meus irmãos
neste mundo roído
pelo terror.
Eles gritam onde eu
não posso escutá-los.
E os ratos roem o
pulso de minha alma.
Deitado no horizonte
bebo a alvura da noite
que ilumina a fachada
dos hospícios.
Ó noite bela como um
navio!
Sou o grão
no silo.
Sou o vento
que vem dos subúrbios
de urina e querosene
e cega lentamente os
olhos das estátuas.
Os gigantes do mundo
me perguntam: “Qual é o teu nome?”
E respondo: “Eu me
chamo Ninguém”.
Os gigantes jiboiam
nos iates ancorados nas ilhas.
A cólera da vida
treme nas calçadas.
E o dia se dissolve,
impostura
desfeita no ar
reverente. E tu que eras gemido e carne
me segues esvaída em
minha saliva.
E como os velhos
aviões dormem nos hangares
assim durmo em ti e o
silêncio é um triunfo
carente de orvalho. E
nenhuma valva se contrai
e os peixes se
acumulam nas cestas fétidas
dos supermercados
diluídos
no puro pasmo das
fornicações.
E a minha vida se
descasca como aqueles velhos balcões
abertos em Nova
Iorque para o esplendor e a mentira.
Sou o que não cabe no
alarido
que da rotunda da
Bolsa de Valores
sobe para o céu sem
sílabas.
No dia bursátil o
suor dos homens se muda em números
mas longe de ti só
ouço as palavras roucas
que saem de tua
garganta visível para o amor.
Ó mulher, esponja do homem,
ocupas toda a
paisagem como um pássaro,
o sol nu, ó minha
égua cargueira,
passeio pelo teu
corpo como uma criança num palácio
e sou a luz dos
espelhos que iluminam teu dorso.
Vagueio pelas
planícies e colinas ao sol-pôr
espantando os
pássaros que ondulam em tuas pálpebras
e enxotando
arco-íris.
E junto aos tapumes
escarlates da tarde
que bloqueia o
cansaço dos homens
vou rastejando na
terra quebrada
onde o ódio passa a
galope, espalhando a morte.
Ó noite dos semáforos
e espantalhos e das
caranguejeiras
ocultas nos trapiches
ó noite dos morcegos
que em minha infância sustentavam
os estandartes do
sonho
as hélices de teus
navios carregados de estrelas cruzam
os anfiteatros do
mar.
Mas onde está a
finisterra que me prometeste, além das ilhas
idiotas e dos mitos
corroído
pela maresia?
Como um lustre no
teatro quando as luzes se acendem
minha vida inteira
estremece ao cair da noite
e ouço na escuridão o
cântico de tudo o que parte.
Promontório
(Edward Henry
Potthast: pintor norte-americano)
Referência:
IVO, Lêdo. Finisterra. In: __________. Os melhores poemas de Lêdo Ivo. Seleção
de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1990. p. 62-67. (Série “Os
Melhores Poemas”, n. 2)
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