Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Antônio Cícero - Guardar

Ao modo acumulador de vida, aquele que nos leva a guardar coisas sem saber o motivo – uma coletânea de CDs nunca ouvidos atentamente e por inteiro, ou de livros, mal compulsados e muito menos lidos –, o poeta propõe um padrão de retenção mais salutar, em que nos flagramos “iluminados” pelo objeto de admiração.

Assim é o poema, que uma vez lido, declamado, interpretado, passa a fazer parte de nossos referentes mentais, distintamente se o deixamos incrustado, gravado e estéril nas páginas de uma obra que “jamais alçará voo”, como sugere Cícero.

J.A.R. – H.C.

Antônio Cícero
(n. 1945)

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

A Ronda Noturna
(Rembrandt: pintor holandês)

Referência:

CÍCERO, Antônio. Guardar. In: Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1996. p. 337.

Nenhum comentário:

Postar um comentário