Ao modo acumulador de vida, aquele que nos leva a guardar coisas sem saber
o motivo – uma coletânea de CDs nunca ouvidos atentamente e por inteiro, ou de
livros, mal compulsados e muito menos lidos –, o poeta propõe um padrão de
retenção mais salutar, em que nos flagramos “iluminados” pelo objeto de
admiração.
Assim é o poema, que uma vez lido, declamado, interpretado, passa a
fazer parte de nossos referentes mentais, distintamente se o deixamos incrustado,
gravado e estéril nas páginas de uma obra que “jamais alçará voo”, como sugere Cícero.
J.A.R. – H.C.
Antônio Cícero
(n. 1945)
Guardar
Guardar uma coisa não
é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se
guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a
coisa à vista.
Guardar uma coisa é
olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é,
iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é
vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar
por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela
ou ser por ela.
Por isso melhor se
guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem
voos.
Por isso se escreve,
por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e
declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua
vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que
guarda um poema:
Por isso o lance do
poema:
Por guardar-se o que
se quer guardar.
A Ronda Noturna
(Rembrandt: pintor
holandês)
Referência:
CÍCERO, Antônio. Guardar. In: Guardar: poemas escolhidos. Rio de
Janeiro, RJ: Record, 1996. p. 337.
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