Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 26 de abril de 2016

Rilke - Quarta Elegia de Duíno

Rilke começou a escrever as elegias em questão no castelo de Duíno, na província de Trieste, às margens do Adriático, noroeste da Itália, daí o motivo para o título da obra, a saber, “Elegias de Duíno”.

Feito o devido esclarecimento, cumpre observar que a linguagem empregada por Rilke revela uma apurada sensibilidade para perceber estados que não se fixam apenas no literal sentido do texto. Isso gera múltiplos níveis de significado e ambivalência, dificultando o pleno entendimento das ideias fixadas em suas elegias.

Por tal motivo, além de transcrever, mais abaixo, a elegia de número quatro, apresento também o comentário que a tradutora Dora Ferreira da Silva teceu a respeito, de modo a facilitar a apreensão das imagens e abstrações evocadas pelo poeta.

J.A.R. – H.C.

Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Elegias de Duíno

Quarta Elegia
(RILKE, 1985, p. 20-24)

Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?
Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as aves
migradoras. Precipitados ou vagarosos
nos impomos repentinamente aos ventos
e tornamos a cair num lago indiferente.
Conhecemos igualmente o florescer e o murchar.
No entanto, em alguma parte, vagueiam leões ainda,
alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor.

Nós, porém, quando pensamos totalmente o Uno,
logo sentimos o lastro do Outro. A hostilidade;
aguarda, muito perto. Os amantes não hesitam, sem cessar,
entre limites – eles que aspiravam refúgio, espaço, busca?
Compõe-se, então, para a fugitiva imagem de um momento
um fundo de oposição, penosamente, para que
a possamos ver; que clareza se nos proporciona,
a nós que ignoramos o contorno da sensação,
aderidos ao exterior de sua forma. – Quem
desconhece a angustiosa espera diante
do palco sombrio do próprio coração?
Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário
de um adeus. Fácil de compreender. O jardim habitual
a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino.
Ele não. Basta. E enquanto se move com desenvoltura,
muda de aspecto; torna-se um burguês
e entra na casa pela porta da cozinha.
Não quero essas máscaras ocas, prefiro
o boneco de corpo cheio. Susterei
o títere, os cordéis e o rosto
feito de aparência. Estou aqui, à espera.
Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda
que me digam: “acabou-se”, – ainda que do palco
se evole o vácuo na corrente de ar cinzento,
ainda que os antepassados silenciosos
não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo
a criança de olhos castanhos e estrábicos, –
ficarei à espera. Sempre há o que ver.

Não tenho razão? Tu, que por mim provaste
a amargura da vida, pai, penetrando
a minha, tu, que provaste a infusão
turva de meu destino, quando ao teu lado
crescia, e, inquieto pelo ressaibo de futuro
tão estranho, puseste à prova
meu olhar velado ainda; – tu, meu pai,
que desde que morreste, tantas vezes |
na esperança que levo em mim, tens medo,
e que por meu destino incerto abandonas
a serenidade dos mortos, reinos
de serenidade, – não tenho razão?
E vós – não tenho razão? – vós que me
amastes pelo tímido início de amor
que vos tinha e do qual me evadia,
pois o espaço que amava em vosso rosto
em espaço cósmico se transformava. – Enquanto
aguardo diante do palco dos títeres, – não,
quando me transformar inteiramente num intenso
olhar, um Anjo surgirá para refazer
o equilíbrio, como o ator que anima os títeres.
Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo.
Congrega-se então o que, sem cessar,
nossa existência mesma desagrega. E nasce
das nossas estações o ciclo da transformação
total. Muito acima de nós, o Anjo brincará.
Olhai, os moribundos não mais suspeitariam
que é pretexto e irrealidade tudo o que aqui
fazemos. Oh, dias da infância, em que atrás
das figuras havia mais do que passado e em que
diante de nós não se abria o futuro!
Crescíamos, é certo, aspirando, às vezes,
tornar-nos grandes, talvez por amor
daqueles que nada mais tinham, senão
o “ser grandes”. E lá permanecíamos,
em nossos caminhos solitários,
na alegria do perdurável, nos limites
do mundo e do brinquedo, no espaço que desde
a origem foi criado para um puro evento.

Quem mostra uma criança tal como é? Quem a
situa na constelação com a medida da distância
em suas mãos? Quem faz sua morte
com pão cinzento que endurece, – ou a abandona
dentro da boca redonda, como o coração
de uma bela maçã?... Compreendemos facilmente
os criminosos. Mas isto: conter a morte,
toda a morte, ainda antes da vida,
tão docemente contê-la e não ser perverso,
isto é inefável.

Castelo de Duíno

Comentário à Quarta Elegia
por Dora Ferreira da Silva
(RILKE, 1985, p. 73-75)

A quarta elegia é a mais obscura de todo o ciclo, dura e amarga, áspera como um monólogo interior. “É difícil amá-la – diz E. M. Butler – mesmo quando se consegue superar em parte as dificuldades intelectuais que apresenta, por causa da impiedade com que repudia todos os valores humanos, procurando convulsivamente sobrepujá-los.” Rilke dissera certa vez que amava as coisas, os animais e os anjos, confessando ter saltado o capítulo da humanidade. De qualquer forma, na quarta elegia, ele expulsa o homem da cena do mundo, invocando o boneco e o Anjo, “ator que anima os títeres”.

O verso inicial “Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?” não pode ser compreendido senão em função da ideia rilkeana de que o homem, desligando-se da natureza, perdeu a unidade cósmica das aves migradoras que vivem ao ritmo das estações, a perda dessa pureza e lucidez originais condenando-o ao conhecimento “indiferente” da primavera e do inverno, da vida e da morte. “Conhecemos igualmente o florescer e o murchar.” Enquanto o animal vive a plenitude do instante, alheio ao desamparo que adviria do conhecimento da morte, o homem vive o drama de sua existência dividida. Nem mesmo o amor é bastante poderoso para unificá-lo e os amantes não fazem mais do que hesitar “entre limites”, eles que procuravam com tanto ardor o refúgio de uma pátria comum.

A oitava elegia terminará pela constatação dolorosa de que o homem, espectador em tudo e sempre, vive “numa incessante despedida”. Não é outro o sentido da imagem do “palco sombrio do próprio coração”, evocado na quarta elegia, diante do qual aguardamos o desenrolar de nossa própria história, espectadores e espetáculo, simultaneamente. “Ergue-se o pano sobre o cenário de um adeus”, o que se entende, pois há “um ar de despedida em tudo que fazemos”, seres provisórios que somos, comprometidos na fuga do tempo. Surge então o anunciado bailarino que consubstancia tudo quanto a vida tem de promessa e fervor; mas logo após os primeiros passos seus pés já se fazem tardos, e, transformado num pesado burguês, “entra na casa pela porta da cozinha”. O poeta pretende aqui humilhar a vida, denunciando a lei de degradação e empobrecimento de todo desenrolar vital; porém, não é a vida a verdadeira responsável, pois “tudo quer planar” (alles wilt schweben): é o homem, dançarino malogrado, que com o seu “espírito da gravidade” impede a levitação das coisas e dos sentimentos, arrastando tudo em sua queda desastrosa.

“Não quero essas máscaras ocas, prefiro o boneco...” exclama o poeta, decidindo-se pela missão poética que o levará a realidades mais profundas. Repudiará sem vacilações todo contato humano, tornar-se-á solitário como um claustro, suportará a imobilidade exasperante do títere inanimado. Sua expectativa é, porém, tão intensa e dolorosa, tão prefiguradora do que deve ser, que “um Anjo surgirá para refazer o equilíbrio, como o ator que anima os títeres”.

“Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo.” Segundo o penetrante comentário de Angelloz, a equação Anjo-boneco de Rilke corresponderia ao Deus-fantoche articulado de Kleist: “O poeta quis certamente descobrir o estado de equilíbrio em que o Anjo e o boneco, isto é, o espírito e a matéria, se unissem para formar, numa verdadeira síntese, o ser humano”. E é na existência misteriosa da criança que vive, “nos limites do mundo e do brinquedo”, a alegria dó perdurável, na criança em cuja obscuridade repousa a semente da morte, que Rilke reconhece a plenitude desejada de uma realidade que amadurece com a verdade dos frutos.

Referência:

RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Editora Globo, 1985.

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