Rilke começou a escrever as elegias em questão no castelo de Duíno, na
província de Trieste, às margens do Adriático, noroeste da Itália, daí o motivo
para o título da obra, a saber, “Elegias de Duíno”.
Feito o devido esclarecimento, cumpre observar que a linguagem empregada
por Rilke revela uma apurada sensibilidade para perceber estados que não se
fixam apenas no literal sentido do texto. Isso gera múltiplos níveis de
significado e ambivalência, dificultando o pleno entendimento das ideias
fixadas em suas elegias.
Por tal motivo, além de transcrever, mais abaixo, a elegia de número
quatro, apresento também o comentário que a tradutora Dora Ferreira da Silva teceu
a respeito, de modo a facilitar a apreensão das imagens e abstrações evocadas
pelo poeta.
J.A.R. – H.C.
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
Elegias de Duíno
Quarta Elegia
(RILKE, 1985, p.
20-24)
Ó árvores da vida,
quando atingireis o inverno?
Ignoramos a unidade.
Não somos lúcidos como as aves
migradoras.
Precipitados ou vagarosos
nos impomos
repentinamente aos ventos
e tornamos a cair num
lago indiferente.
Conhecemos igualmente
o florescer e o murchar.
No entanto, em alguma
parte, vagueiam leões ainda,
alheios ao desamparo
enquanto vivem seu esplendor.
Nós, porém, quando
pensamos totalmente o Uno,
logo sentimos o
lastro do Outro. A hostilidade;
aguarda, muito perto.
Os amantes não hesitam, sem cessar,
entre limites – eles
que aspiravam refúgio, espaço, busca?
Compõe-se, então,
para a fugitiva imagem de um momento
um fundo de oposição,
penosamente, para que
a possamos ver; que
clareza se nos proporciona,
a nós que ignoramos o
contorno da sensação,
aderidos ao exterior
de sua forma. – Quem
desconhece a
angustiosa espera diante
do palco sombrio do
próprio coração?
Olhai: ergue-se o
pano sobre o cenário
de um adeus. Fácil de
compreender. O jardim habitual
a oscilar
ligeiramente. Só então aparece o bailarino.
Ele não. Basta. E enquanto se move com
desenvoltura,
muda de aspecto;
torna-se um burguês
e entra na casa pela
porta da cozinha.
Não quero essas
máscaras ocas, prefiro
o boneco de corpo
cheio. Susterei
o títere, os cordéis
e o rosto
feito de aparência.
Estou aqui, à espera.
Ainda que as lâmpadas
se apaguem, ainda
que me digam: “acabou-se”,
– ainda que do palco
se evole o vácuo na
corrente de ar cinzento,
ainda que os
antepassados silenciosos
não estejam ao meu
lado, nem mulher, nem mesmo
a criança de olhos
castanhos e estrábicos, –
ficarei à espera.
Sempre há o que ver.
Não tenho razão? Tu,
que por mim provaste
a amargura da vida,
pai, penetrando
a minha, tu, que
provaste a infusão
turva de meu destino,
quando ao teu lado
crescia, e, inquieto
pelo ressaibo de futuro
tão estranho, puseste
à prova
meu olhar velado
ainda; – tu, meu pai,
que desde que
morreste, tantas vezes |
na esperança que levo
em mim, tens medo,
e que por meu destino
incerto abandonas
a serenidade dos
mortos, reinos
de serenidade, – não
tenho razão?
E vós – não tenho
razão? – vós que me
amastes pelo tímido
início de amor
que vos tinha e do
qual me evadia,
pois o espaço que
amava em vosso rosto
em espaço cósmico se
transformava. – Enquanto
aguardo diante do
palco dos títeres, – não,
quando me transformar
inteiramente num intenso
olhar, um Anjo
surgirá para refazer
o equilíbrio, como o
ator que anima os títeres.
Anjo e boneco: haverá
por fim espetáculo.
Congrega-se então o
que, sem cessar,
nossa existência
mesma desagrega. E nasce
das nossas estações o
ciclo da transformação
total. Muito acima de
nós, o Anjo brincará.
Olhai, os moribundos
não mais suspeitariam
que é pretexto e
irrealidade tudo o que aqui
fazemos. Oh, dias da
infância, em que atrás
das figuras havia
mais do que passado e em que
diante de nós não se
abria o futuro!
Crescíamos, é certo,
aspirando, às vezes,
tornar-nos grandes,
talvez por amor
daqueles que nada
mais tinham, senão
o “ser grandes”. E lá
permanecíamos,
em nossos caminhos
solitários,
na alegria do
perdurável, nos limites
do mundo e do
brinquedo, no espaço que desde
a origem foi criado
para um puro evento.
Quem mostra uma
criança tal como é? Quem a
situa na constelação
com a medida da distância
em suas mãos? Quem
faz sua morte
com pão cinzento que
endurece, – ou a abandona
dentro da boca
redonda, como o coração
de uma bela maçã?...
Compreendemos facilmente
os criminosos. Mas
isto: conter a morte,
toda a morte, ainda antes da vida,
tão docemente
contê-la e não ser perverso,
isto é inefável.
Castelo de Duíno
Comentário à Quarta Elegia
por Dora Ferreira da Silva
(RILKE, 1985, p.
73-75)
A quarta elegia é a
mais obscura de todo o ciclo, dura e amarga, áspera como um monólogo interior.
“É difícil amá-la – diz E. M. Butler – mesmo quando se consegue superar em
parte as dificuldades intelectuais que apresenta, por causa da impiedade com
que repudia todos os valores humanos, procurando convulsivamente sobrepujá-los.”
Rilke dissera certa vez que amava as coisas, os animais e os anjos, confessando
ter saltado o capítulo da humanidade. De qualquer forma, na quarta elegia, ele
expulsa o homem da cena do mundo, invocando o boneco e o Anjo, “ator que anima
os títeres”.
O verso inicial “Ó
árvores da vida, quando atingireis o inverno?” não pode ser compreendido senão
em função da ideia rilkeana de que o homem, desligando-se da natureza, perdeu a
unidade cósmica das aves migradoras que vivem ao ritmo das estações, a perda
dessa pureza e lucidez originais condenando-o ao conhecimento “indiferente” da
primavera e do inverno, da vida e da morte. “Conhecemos igualmente o florescer
e o murchar.” Enquanto o animal vive a plenitude do instante, alheio ao
desamparo que adviria do conhecimento da morte, o homem vive o drama de sua
existência dividida. Nem mesmo o amor é bastante poderoso para unificá-lo e os
amantes não fazem mais do que hesitar “entre limites”, eles que procuravam com
tanto ardor o refúgio de uma pátria comum.
A oitava elegia
terminará pela constatação dolorosa de que o homem, espectador em tudo e
sempre, vive “numa incessante despedida”. Não é outro o sentido da imagem do “palco
sombrio do próprio coração”, evocado na quarta elegia, diante do qual
aguardamos o desenrolar de nossa própria história, espectadores e espetáculo,
simultaneamente. “Ergue-se o pano sobre o cenário de um adeus”, o que se
entende, pois há “um ar de despedida em tudo que fazemos”, seres provisórios
que somos, comprometidos na fuga do tempo. Surge então o anunciado bailarino
que consubstancia tudo quanto a vida tem de promessa e fervor; mas logo após os
primeiros passos seus pés já se fazem tardos, e, transformado num pesado
burguês, “entra na casa pela porta da cozinha”. O poeta pretende aqui humilhar
a vida, denunciando a lei de degradação e empobrecimento de todo desenrolar
vital; porém, não é a vida a verdadeira responsável, pois “tudo quer planar” (alles wilt schweben): é o homem,
dançarino malogrado, que com o seu “espírito da gravidade” impede a levitação
das coisas e dos sentimentos, arrastando tudo em sua queda desastrosa.
“Não quero essas
máscaras ocas, prefiro o boneco...” exclama o poeta, decidindo-se pela missão
poética que o levará a realidades mais profundas. Repudiará sem vacilações todo
contato humano, tornar-se-á solitário como um claustro, suportará a imobilidade
exasperante do títere inanimado. Sua expectativa é, porém, tão intensa e
dolorosa, tão prefiguradora do que deve ser, que “um Anjo surgirá para refazer
o equilíbrio, como o ator que anima os títeres”.
“Anjo e boneco:
haverá por fim espetáculo.” Segundo o penetrante comentário de Angelloz, a
equação Anjo-boneco de Rilke corresponderia ao Deus-fantoche articulado de
Kleist: “O poeta quis certamente descobrir o estado de equilíbrio em que o Anjo
e o boneco, isto é, o espírito e a matéria, se unissem para formar, numa
verdadeira síntese, o ser humano”. E é na existência misteriosa da criança que
vive, “nos limites do mundo e do brinquedo”, a alegria dó perdurável, na
criança em cuja obscuridade repousa a semente da morte, que Rilke reconhece a
plenitude desejada de uma realidade que amadurece com a verdade dos frutos.
Referência:
RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução de Dora
Ferreira da Silva. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Editora Globo, 1985.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário