Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Ana Cristina Cesar - O gato como um dia imaginado

A poetisa imagina um dia nas palavras. E a ele associa um gato, um gato que não pertence ao seu tempo, mas a um dia futuro, quando então será capaz de fluir num quotidiano como saltos de montanha.

Um gato simbólico e não simbólico, imerso em palavras, diários, pensamentos, que, num dado momento, há de se transformar em desenhos e escritos que, como o próprio poema, será capaz de perdurar para além do fim dos palmares...

J.A.R. – H.C.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

O gato era um dia imaginado nas palavras

O gato era um dia imaginado nas palavras
conforme os gastos diários pensamentos
o gato era um dia como um futuro
e enterro temido dos palmares.
O gato era excluso do meu tempo
e arranhava em espaços esse dia
o gato era gato que não símbolo
e símbolo que não era nesse dia
o gato era o dia sem poeta
redividindo em dias os seus saltos
que dia a dia seriam de montanhas
e desenhos e escritos que parassem
o dia do gato que seria
e o salto futuro do poeta.

d’après Jorge de Lima
Invenção de Orfeu III, XXII (*)

(Poemas de 1961-1972)

Interior com uma mesa
(Vanessa Bell: pintora inglesa)

Nota:

(*) A poetisa faz menção, aparentemente, à seção XXII do Canto III da obra “Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima, que lhe teria inspirado a elaboração de seu poema, a saber:

Canto III: XXII

Era uma vinda,
dadas as luzes,
dadas as faces
que ali se achavam,
nenhuma espúria,
nenhuma enferma,
dadas as cores,
dadas as falas
que ali se achavam;
dadas as provas
dessas presenças,
deu-se o milagre
em aços doces,
em gumes brandos
em chamas graves;
formou-se um gênio
pentangular
que começava
com a estrela Vésper,
riscando a noite
sem se acabar;
formou-se um lírio
na suave treva,
gerou-se um grito
de tantas vozes,
criou-se um fogo
correspondente,
jorrou-se um pranto
desabitado.

Era uma tarde:
ninguém sabia
o que no mundo
ia acabar.

Sei que houve portas
escancaradas,
sei que houve apelos
antiencarnados.

E houve um dilúvio,
mas era um fogo
desabrochado.

Referências:

CESAR, Ana Cristina. O gato era um dia imaginado nas palavras. In: __________. Inéditos e dispersos: poesia / prosa. 3 ed. Organização de Armando Freitas Filho. São Paulo, SP: Ática, 1998. p. 68.

LIMA, Jorge de. Canto III, seção XXII. In: __________. LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Biografia, introdução e notas de M. Cavalcante Proença. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint / Ediouro, 1967. p. 131-132. (“Clássicos Brasileiros”)
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