A poetisa imagina um dia nas palavras. E a ele associa um gato, um gato
que não pertence ao seu tempo, mas a um dia futuro, quando então será capaz de
fluir num quotidiano como saltos de montanha.
Um gato simbólico e não simbólico, imerso em palavras, diários, pensamentos,
que, num dado momento, há de se transformar em desenhos e escritos que, como o
próprio poema, será capaz de perdurar para além do fim dos palmares...
J.A.R. – H.C.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
O gato era um dia imaginado nas
palavras
O gato era um dia
imaginado nas palavras
conforme os gastos
diários pensamentos
o gato era um dia
como um futuro
e enterro temido dos
palmares.
O gato era excluso do
meu tempo
e arranhava em
espaços esse dia
o gato era gato que
não símbolo
e símbolo que não era
nesse dia
o gato era o dia sem
poeta
redividindo em dias
os seus saltos
que dia a dia seriam
de montanhas
e desenhos e escritos
que parassem
o dia do gato que
seria
e o salto futuro do
poeta.
d’après Jorge de Lima
Invenção de Orfeu III, XXII (*)
(Poemas de 1961-1972)
Interior com uma mesa
(Vanessa Bell:
pintora inglesa)
Nota:
(*) A poetisa faz menção,
aparentemente, à seção XXII do Canto III da obra “Invenção de Orfeu”, de Jorge
de Lima, que lhe teria inspirado a elaboração de seu poema, a saber:
Canto III: XXII
Era uma vinda,
dadas as luzes,
dadas as faces
que ali se achavam,
nenhuma espúria,
nenhuma enferma,
dadas as cores,
dadas as falas
que ali se achavam;
dadas as provas
dessas presenças,
deu-se o milagre
em aços doces,
em gumes brandos
em chamas graves;
formou-se um gênio
pentangular
que começava
com a estrela Vésper,
riscando a noite
sem se acabar;
formou-se um lírio
na suave treva,
gerou-se um grito
de tantas vozes,
criou-se um fogo
correspondente,
jorrou-se um pranto
desabitado.
Era uma tarde:
ninguém sabia
o que no mundo
ia acabar.
Sei que houve portas
escancaradas,
sei que houve apelos
antiencarnados.
E houve um dilúvio,
mas era um fogo
desabrochado.
Referências:
CESAR, Ana Cristina. O gato era um dia
imaginado nas palavras. In: __________. Inéditos
e dispersos: poesia / prosa. 3 ed. Organização de Armando Freitas Filho.
São Paulo, SP: Ática, 1998. p. 68.
LIMA, Jorge de. Canto III, seção XXII. In: __________. LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Biografia, introdução e notas de M. Cavalcante Proença. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint / Ediouro, 1967. p. 131-132. (“Clássicos Brasileiros”)
LIMA, Jorge de. Canto III, seção XXII. In: __________. LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Biografia, introdução e notas de M. Cavalcante Proença. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint / Ediouro, 1967. p. 131-132. (“Clássicos Brasileiros”)
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