Um delírio de poesia. Poesia plasmada nos atributos de virgindade,
castidade e indefinição. Encapsulada num poema derramado de lirismo, com aquele
poder de vislumbrar outras tantas relações, liames, que não os do mundo real.
Nas linhas e entrelinhas do texto da poetisa portuguesa Natércia Freire,
sobressai o resgate do passado, que segundo ela mesma, “jamais dorme”. Passado
envolto em poesia perturbadora, abandonada, aprisionada, esquecida, recalcada,
maltratada. Mas ainda assim, poesia!
J.A.R. – H.C.
Natércia Freire
(1920-2004)
Indefinida
Oh, Poesia de andar
suspensa sobre
outeiros!
Poesia de correr
Fundida nos
ribeiros...
Oh, Poesia de ti,
que em mim estás a
viver!
Oh, Poesia de então,
nos jardins, sob o
Inverno,
pés na lama do chão,
e o dia, um dia
eterno
de Poesia, a
morrer!...
Poesia dos murmúrios,
dos nevoeiros densos,
dos silêncios sem
luz,
dos pecados imensos,
sem gestos, qual a
morte,
qual a ausência, sem
vida.
Poesia de fechar
os olhos alagados
da Poesia de ti,
dos teus olhos
fechados;
Poesia de ser virgem
e casta e
indefinida...
Poesia, dos passeios
por entre a
claridade,
entre árvores tão
esguias
que tocavam os Céus,
e as folhas a cair
de um oiro sem
idade...
Poesia fabulosa,
de uma riqueza
enorme...
Uma Poesia fina,
alada, misteriosa;
Poesia de um passado
que em mim nunca mais
dorme!
Poesia perturbada,
Poesia abandonada.
Poesia na prisão,
sufocada,
esquecida,
Poesia recalcada,
Poesia maltratada.
Ai, Poesia troçada
da jovem bem-casada
na poesia da vida!...
Ai, dias sem
desígnio!
Ai, noites de
mistério!
Poesia de ser virgem
e casta e
indefinida!...
(Em: “Anel de Sete Pedras”)
Pintura sem título
(Zdzisław Beksiński: pintor polonês)
Referência:
FREIRE, Natércia. Indefinida. In: HATHERLY,
Ana (Seleção e Organização). Caminhos da
moderna poesia portuguesa. 2. ed. [Lisboa, PT]: Ministério da Educação
Nacional, Direção Geral de Ensino Primário, Editora Gráfica Portuguesa Ltda.,
1969. p. 76-78. (Coleção Educativa - Série G - nº 8)
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