Num belo poema com o título de “Advento”,
período de quatro semanas que antecede a festa do Natal, o poeta e novelista
irlandês Patrick Kavanagh revela sua intenção de renovar-se como uma criança,
pela assunção de um estado de inocência, anterior ao alimento extraído à árvore
do conhecimento, fruto que, alegoricamente, ensejou a queda do casal primevo e
de toda a sua descendência.
Kavanagh pondera que a “larga fresta” por onde
tudo transita ofusca o potencial de arrebatamento, uma vez que a mente se deixa
capturar pelo excesso de consciência e de autoindulgência. Ou por outra: é
preciso ter a mente de uma criança, novamente, para que sejamos capazes de nos
maravilhar com tudo; ter contentamento nas coisas simples, pela mudança na
forma de vê-las.
O poema recolhe as imagens de uma Irlanda que
restaram indeléveis na mente do poeta: charcos, estábulos e a colina de Ulster
– similares às do cenário de Belém –, lá onde a contagem do tempo começa,
leia-se, no momento mesmo do nascimento de Cristo.
É num mundo ordinário, e não extraordinário, que
Kavanagh busca a presença divina, para experimentá-la, vivenciá-la e
desfrutá-la, sem muitos questionamentos: a parte final do poema transita da
forma verbal futura para a pretérita – ocasião em que sugere que joguemos fora
os encargos da vida adulta e assumamos o nosso lado criança –, após o que o
tempo regressa ao presente, quando faz referência à chegada de Cristo com uma
flor de Janeiro.
No poema, nota-se ainda a clara associação de um
verso para cada dia das quatro semanas do Advento: são 28 ao todo, que bem
dariam dois sonetos, muito embora a forma visual de apresentação adotada por
Kavanagh seja algo inusitada, como se pode ver na sequência.
J.A.R. – H.C.
Patrick Kavanagh
(1904-1967)
Advent
We
have tested and tasted too much, love −
Through
a chink too wide there comes in no wonder.
But
here in the Advent-darkened room
Where
the dry black bread and the sugarless tea
Of
penance will charm back the luxury
Of
a child’s soul, we’ll return to Doom
The
knowledge we stole but could not use.
And
the newness that was in every stale thing
When
we looked at it as children: the spirit-shocking
Wonder
in a black slanting Ulster hill
Or
the prophetic astonishment in the tedious talking
Of
an old fool will awake for us and bring
You
and me to the yard gate to watch the whins
And
the bog-holes, cart-tracks, old stables where Time begins.
O
after Christmas we’ll have no need to go searching
For
the difference that sets an old phrase burning −
We’ll
hear it in the whispered argument of a churning
Or
in the streets where the village boys are lurching.
And
we’ll hear it among decent men too
Who
barrow dung in gardens under trees,
Wherever
life pours ordinary plenty.
Won’t
we be rich, my love and I, and
God
we shall not ask for reason’s payment,
The
why of heart-breaking strangeness in dreeping (*) hedges
Nor
analyse God’s breath in common statement.
We
have thrown into the dust-bin the clay-minted wages
Of
pleasure, knowledge and the conscious hour −
And
Christ comes with a January flower.
Advento - Ontem, Hoje e Sempre
(Matt Whitney: artista
norte-americano)
Advento
Temos experimentado e saboreado por demais, amor
–
Por meio de uma larga fenda que nos chega sem
surpresa.
Mas aqui na câmara escura do Advento
Onde o seco e negro pão e o chá sem açúcar
Da penitência atrairão de volta a opulência
Da alma de uma criança, nós devolveremos ao
Juízo
O conhecimento subtraído que não logramos
empregar.
E a novidade que se encontrava em todas as
coisas pretéritas
Quando para elas olhávamos como crianças: a
estupefaciente
Admiração numa escura colina inclinada de Ulster
Ou o assombro profético na conversa tediosa
De um velho estulto revelar-se-ão para nós e
conduzirão
Você e eu ao portão do jardim para vermos as
giestas
E os regos do charco, carreiros, velhos
estábulos onde o Tempo começa.
Ó, depois do Natal não haverá necessidade de ir
em busca
Da diferença que elucida uma antiga frase em
chamas –
Vamos ouvi-la no colóquio sussurrado em volta do
misturador
Ou nas ruas onde os meninos da aldeia
cambaleiam.
E a escutaremos também entre homens decentes
Que estrumam carrinhos de mão nos jardins sob as
árvores,
Onde quer que a vida difunda a costumeira
abundância.
Não seremos ricos, meu amor e eu, e graças a
Deus não haveremos de questionar os fundamentos,
O porquê da lancinante estranheza das
encharcadas, mas firmes sebes,
Tampouco analisar uma asserção corrente
sobre o sopro divino.
Temos lançado no caixote do lixo os proventos em
argila cunhada
Do prazer, do conhecimento e da hora consciente
–
E Cristo aparece com uma flor de Janeiro.
Nota:
(*) “Dreeping”, pelo que andamos a investigar,
parece ser um neologismo, a fundir as palavras “dripping” (encharcado) e “deep”
(profundo). O termo teria aparecido, de início, no Capítulo 18 de “Ulysses”, e
no Livro 3, Capítulo 2, de “Finnegans Wake”, ambos do também irlandês James
Joyce.
Referência:
KAVANAGH, Patrick. Advent. In: ORDER OF SAINT
BENEDICT. The glenstal book of readings for the seasons.
Collegeville (MN): Liturgical Press Saint John’s Abbey, 2008. p.
12-13.
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