Vão aqui quatro poemas extraídos do “Cancioneiro de Natal”, obra de 1971
pela qual David Mourão-Ferreira, poeta lusitano, foi agraciado com o “Prêmio
Nacional de Poesia”.
O clima poético na escrita de Mourão paira sobre uma realidade diáfana, projetada em futuro incógnito, duvidoso, sob o letargo de sonho,
por onde o pensamento, sem estabilidade mecânica como corolário, não logra
cavalgar sobre as raias seguras do existir. Tudo são dúvidas, quer nos
refiramos a coisas tangíveis quer a intangíveis. Quase nos contrafortes do
niilismo. É como se nos debatêssemos, a todo instante, com a máxima hamletiana:
“To be or not to be, that is de question!”.
J.A.R. – H.C.
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
Ladainha dos póstumos Natais
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que se veja à mesa
o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que hão-de me
lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que só uma voz me
evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que não viva já
ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que nem vivo
esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que terei de novo
o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que nem o Natal
terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e
será o primeiro
em que o Nada retome
a cor do Infinito
In: COSTA E SILVA; BUENO, 1999. p.
179-180.
Nada/Natal
Este lume que já nos
não aquece
Este medo do nada que
nos contem
Esta névoa de nata em
vez de neve
E a nossa vida cada
vez mais ontem
Este Sol que não
rompe sob os cactos
Estes mortos de novo
hoje tão perto
É no búzio dos
crânios exumados
que melhor nós
ouvimos o deserto
Estas folhas de
plátano Estas mãos
que o fogo vai
torcendo lentamente
Esta cinza no fim de
uma oração
Este sino Este céu
sobrevivente
Mas soa a meia-noite
E logo o nada
deixa de estar em
tudo como estava
In: COSTA E SILVA; BUENO, 1999. p. 180.
Coro de Natal
Quem nos garante que
estamos vivos
que sequer somos o que
fingimos
se atravessamos ruas
e praça
sempre com ’spadas
entre as espáduas
e com serpentes em
torno aos braços
e com cilícios em vez
de cílios
e com os sonhos
desarrumados
pelos sorrisos e
compromissos
desta comédia de
celebrar-te
assegurando que não
existes
Quem nos garante que
estamos vivos
Ou não seremos
somente o lixo
da grande roda que
nos esmaga
da grande garra que
nos agarra
do grande grito que
nem gritado
por todos juntos será
ouvido
Quem nos garante se
neste espaço
que nos separa só o
sigilo
preenche as pausas a
grande pausa
de recearmos que tu
existas
Quem nos garante que
estamos vivos
se atravessando ruas
e rios
portas e portos
pontes e praças
só deparamos com os
esgares
que já tiveram as
nossas faces
à mesma hora nos
mesmos sítios
Quem nos garante que
sob as lajes
de outras cidades de
outros jazigos
neste momento
ressuscitados
não afirmamos que Tu
existes
In: COSTA E SILVA; BUENO, 1999. p. 180-181.
Elegia de Natal
Era também de noite
Era também Dezembro
Vieram-me dizer que o
meu irmão nascera
Já não sei afinal se
o recordo ou se penso
que estou a
recordá-lo à força de o dizerem
Mas o teu berço foi o
primeiro presépio
em que pouco depois o
meu olhar pousava
Não era mais real do
que existirem prédios
nem menos irreal do
que haver madrugadas
Dezembro retornava e
nunca soube ao certo
se o intruso era eu
se o intruso eras tu
Quase aceitava até
que alguém te supusesse
mais do que meu irmão
um gêmeo de Jesus
Para ti se encenava o
palco da surpresa
Entravas no papel de
que eu ia descrendo
Mas sabia-me bem
salvar a tua crença
E era sempre de noite
Era sempre em Dezembro
Entretanto em que mês
em que dia é que estamos
Que verdete corrói
prédios e madrugadas
De que muro retiro o
musgo desses anos
que entre os dedos
depois se me desfaz em água
Para onde levaste a
criança que foste
Em vez da tua voz que
ciprestes são estes
Como dizer Natal se
te não vejo hoje
Como dizer Natal
agora que morreste
In: COSTA E SILVA; BUENO, 1999. p. 181-182.
Referência:
COSTA E SILVA, Alberto; BUENO, Alexei
(Seleção e Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um
panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
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