Num dia como hoje, 27 de dezembro, no já distante ano de 1929 –
coincidência das coincidências, o mesmo ano em que ocorreu a quebra da Bolsa de
Nova York, dando início ao pior momento econômico da história dos EUA, a “Grande
Depressão” –, o poeta espanhol García Lorca, em passagem por aquela megalópole,
escreveu o poema que ora postamos: “Navidad en el Hudson”.
Não se trata de um poema nitidamente relacionado ao Natal. Tampouco o Rio
Hudson nele aparece como um cenário geográfico muito bem definido, senão
metaforizado na figura da morte.
Note-se que nem mesmo a morte do marinheiro recém-degolado possui um
sentido denotativo explícito, a configurar uma tragédia porventura ali ocorrida,
pois a voz poética subjacente continua a falar, e mesmo o marinheiro degolado
põe-se a cantar na terceira estrofe do poema.
Ocorre, de fato, uma identificação do estado mental do poeta com o
ambiente que o circunda: as anáforas da primeira estrofe – os ‘esses’ e ‘essas’
reiterados, como a configurar realidades alheias a si próprio –, são subtraídas
na copla derradeira, quando ocorre a transformação dos elementos da descrição
original em profundas internalizações, enunciadas agora sob um estado de posse:
“Oh! esponja minha cinzenta!”.
O poema, ademais, flui em esquivas imagens, como na abordagem panorâmica
de Nova York, constante na segunda estrofe, conjugadas a outras nas quais se
pode intuir certa solidão e alheamento, como quando se aborda a luta vã de
centenas de marinheiros sob o céu, num mundo à parte.
Mesmo o componente erótico não pode ser descartado, enquanto hipótese
presente em sua última estrofe: se o poeta for o marinheiro degolado, o que se
poderia afirmar sobre o extremo verso do poema, a grafar a “lâmina de meu amor,
lâmina cortante”?!
A reportar, com mais nitidez, o nascimento de Cristo, apenas o início da
última estrofe, momento em que se identifica a fábula religiosa – “inerte”
segundo o poeta – e se manifesta a pouca importância do nascimento de um novo
menino, ante o quadro desolador apresentado pela “desembocadura” do rio, a alegoria
de um mundo em frenesi.
J.A.R. – H.C.
García Lorca
(1898-1936)
Navidad en el Hudson
¡Esa esponja gris!
Ese marinero recién
degollado.
Ese rio grande.
Esa brisa de limites
osctiros.
Ese filo, amor, ese
filo.
Estaban los cuatro
marineros luchando con el mundo,
con el mundo de aristas
que ven todos los ojos,
con el mundo que no
se puede recorrer sin caballos.
Estaban uno, cien,
mil marineros,
luchando con el mundo
de las agudas velocidades,
sin enterarse de que
el mundo
estaba solo por el
cielo.
El mundo solo por el
cielo solo.
Son las colinas de
martillos y el triunfo de la hierba espesa.
Son los vivísimos
hormigueros y las monedas en el fango.
El mundo solo por el
cielo solo
y el aire a la salida
de todas las aldeãs.
Cantaba la lombriz el
terror de la rueda
y el marinero
degollado
cantaba el oso de
agua que lo había de estrechar;
y todos cantaban
aleluya,
aleluya. Cielo
desierto.
Es lo mismo, ¡lo mismo!, aleluya.
He pasado toda la
noche en los andamios de los arrabales
dejándome la sangre
por la escayola de los proyectos,
ayudando a los
marineros a recoger las velas desgarradas.
Y estoy con las manos
vacías en el rumor de la desembocadura.
No importa que cada
minuto
un nino nuevo agite
sus ramitos de venas,
ni que el parto de la
víbora, desatado bajo las ramas,
calme la sed de
sangre de los que miran el desnudo.
Lo que importa es
esto: hueco. Mundo solo. Desembocadura.
Alba no. Fábula
inerte.
Solo esto:
Desembocadura.
¡Oh esponja mia gris!
¡Oh cuello mio recién
degollado!
¡Oh rio grande mio!
¡Oh brisa mia de
limites que no son mios!
¡Oh filo de mi amor,
oh hiriente filo!
New York, 27 de diciembre de 1929.
Christmas Eve along the Hudson
with the Palisades across the River
(Samuel Carr: 1837-1908)
Natal no Hudson
Essa esponja
cinzenta!
Esse marinheiro
recém-degolado.
Esse rio grande.
Essa brisa de limites
escuros.
Esse fio, amor, esse
fio.
Estavam os quatro
marinheiros lutando com o mundo,
com o mundo de
arestas que todos os olhos veem,
com o mundo que não
se pode percorrer sem cavalos.
Estavam um, cem, mil
marinheiros,
lutando com o mundo
das agudas velocidades,
sem inteirar-se de
que o mundo
estava só pelo céu.
O mundo sozinho pelo
céu sozinho.
São as colinas de
martelos e o triunfo da erva espessa.
São os vivíssimos
formigueiros e as moedas no lodo.
O mundo sozinho pelo
céu sozinho
e o ar à saída de
todas as aldeias.
Cantava a lombriga o
terror da roda,
e o marinheiro
degolado
cantava o urso de
água que o havia de estreitar;
e todos cantavam
aleluia,
aleluia. Céu deserto.
É o mesmo, o mesmo!,
aleluia.
Passei a noite toda
nos andaimes dos arrabaldes
deixando o meu sangue
pelo estuque dos projetos,
ajudando os
marinheiros a recolher as velas desgarradas.
E estou com as mãos
vazias no rumor da desembocadura.
Não importa que cada
minuto
um menino novo agite
seus raminhos de veias,
nem que o parto da
víbora, desfeito sob as ramas,
acalme a sede de
sangue dos que olham o nu.
O que importa é isto:
vazio. Mundo só. Desembocadura.
Aurora não. Fábula
inerte.
Só isto:
Desembocadura.
Oh! esponja minha
cinzenta!
Oh! pescoço meu
recém-degolado!
Oh! rio grande meu!
Oh! brisa minha de
limites que não são meus!
Oh! fio de meu amor,
oh!, fio feridor!
Nova York, 27 de dezembro de 1929.
Referência:
LORCA, Federico García. Navidad en el
Hudson; Natal no Hudson. In: __________. Obra
poética completa. Edição bilíngue. Tradução de William Agel de Melo.
Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 442-445.
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