Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 27 de dezembro de 2014

Federico García Lorca - Natal no Hudson

Num dia como hoje, 27 de dezembro, no já distante ano de 1929 – coincidência das coincidências, o mesmo ano em que ocorreu a quebra da Bolsa de Nova York, dando início ao pior momento econômico da história dos EUA, a “Grande Depressão” –, o poeta espanhol García Lorca, em passagem por aquela megalópole, escreveu o poema que ora postamos: “Navidad en el Hudson”.

Não se trata de um poema nitidamente relacionado ao Natal. Tampouco o Rio Hudson nele aparece como um cenário geográfico muito bem definido, senão metaforizado na figura da morte.

Note-se que nem mesmo a morte do marinheiro recém-degolado possui um sentido denotativo explícito, a configurar uma tragédia porventura ali ocorrida, pois a voz poética subjacente continua a falar, e mesmo o marinheiro degolado põe-se a cantar na terceira estrofe do poema.

Ocorre, de fato, uma identificação do estado mental do poeta com o ambiente que o circunda: as anáforas da primeira estrofe – os ‘esses’ e ‘essas’ reiterados, como a configurar realidades alheias a si próprio –, são subtraídas na copla derradeira, quando ocorre a transformação dos elementos da descrição original em profundas internalizações, enunciadas agora sob um estado de posse:  “Oh! esponja minha cinzenta!”.

O poema, ademais, flui em esquivas imagens, como na abordagem panorâmica de Nova York, constante na segunda estrofe, conjugadas a outras nas quais se pode intuir certa solidão e alheamento, como quando se aborda a luta vã de centenas de marinheiros sob o céu, num mundo à parte.

Mesmo o componente erótico não pode ser descartado, enquanto hipótese presente em sua última estrofe: se o poeta for o marinheiro degolado, o que se poderia afirmar sobre o extremo verso do poema, a grafar a “lâmina de meu amor, lâmina cortante”?!

A reportar, com mais nitidez, o nascimento de Cristo, apenas o início da última estrofe, momento em que se identifica a fábula religiosa – “inerte” segundo o poeta – e se manifesta a pouca importância do nascimento de um novo menino, ante o quadro desolador apresentado pela “desembocadura” do rio, a alegoria de um mundo em frenesi.

J.A.R. – H.C.

García Lorca
(1898-1936)

Navidad en el Hudson

¡Esa esponja gris!
Ese marinero recién degollado.
Ese rio grande.
Esa brisa de limites osctiros.
Ese filo, amor, ese filo.
Estaban los cuatro marineros luchando con el mundo,
con el mundo de aristas que ven todos los ojos,
con el mundo que no se puede recorrer sin caballos.
Estaban uno, cien, mil marineros,
luchando con el mundo de las agudas velocidades,
sin enterarse de que el mundo
estaba solo por el cielo.

El mundo solo por el cielo solo.
Son las colinas de martillos y el triunfo de la hierba espesa.
Son los vivísimos hormigueros y las monedas en el fango.
El mundo solo por el cielo solo
y el aire a la salida de todas las aldeãs.

Cantaba la lombriz el terror de la rueda
y el marinero degollado
cantaba el oso de agua que lo había de estrechar;
y todos cantaban aleluya,
aleluya. Cielo desierto.
Es lo mismo, ¡lo mismo!, aleluya.

He pasado toda la noche en los andamios de los arrabales
dejándome la sangre por la escayola de los proyectos,
ayudando a los marineros a recoger las velas desgarradas.
Y estoy con las manos vacías en el rumor de la desembocadura.

No importa que cada minuto
un nino nuevo agite sus ramitos de venas,
ni que el parto de la víbora, desatado bajo las ramas,
calme la sed de sangre de los que miran el desnudo.
Lo que importa es esto: hueco. Mundo solo. Desembocadura.
Alba no. Fábula inerte.
Solo esto: Desembocadura.
¡Oh esponja mia gris!
¡Oh cuello mio recién degollado!
¡Oh rio grande mio!
¡Oh brisa mia de limites que no son mios!
¡Oh filo de mi amor, oh hiriente filo!

New York, 27 de diciembre de 1929.

Christmas Eve along the Hudson
with the Palisades across the River
(Samuel Carr: 1837-1908)

Natal no Hudson

Essa esponja cinzenta!
Esse marinheiro recém-degolado.
Esse rio grande.
Essa brisa de limites escuros.
Esse fio, amor, esse fio.
Estavam os quatro marinheiros lutando com o mundo,
com o mundo de arestas que todos os olhos veem,
com o mundo que não se pode percorrer sem cavalos.
Estavam um, cem, mil marinheiros,
lutando com o mundo das agudas velocidades,
sem inteirar-se de que o mundo
estava só pelo céu.

O mundo sozinho pelo céu sozinho.
São as colinas de martelos e o triunfo da erva espessa.
São os vivíssimos formigueiros e as moedas no lodo.
O mundo sozinho pelo céu sozinho
e o ar à saída de todas as aldeias.

Cantava a lombriga o terror da roda,
e o marinheiro degolado
cantava o urso de água que o havia de estreitar;
e todos cantavam aleluia,
aleluia. Céu deserto.
É o mesmo, o mesmo!, aleluia.

Passei a noite toda nos andaimes dos arrabaldes
deixando o meu sangue pelo estuque dos projetos,
ajudando os marinheiros a recolher as velas desgarradas.
E estou com as mãos vazias no rumor da desembocadura.

Não importa que cada minuto
um menino novo agite seus raminhos de veias,
nem que o parto da víbora, desfeito sob as ramas,
acalme a sede de sangue dos que olham o nu.
O que importa é isto: vazio. Mundo só. Desembocadura.
Aurora não. Fábula inerte.
Só isto: Desembocadura.
Oh! esponja minha cinzenta!
Oh! pescoço meu recém-degolado!
Oh! rio grande meu!
Oh! brisa minha de limites que não são meus!
Oh! fio de meu amor, oh!, fio feridor!

Nova York, 27 de dezembro de 1929. 

Referência:

LORCA, Federico García. Navidad en el Hudson; Natal no Hudson. In: __________. Obra poética completa. Edição bilíngue. Tradução de William Agel de Melo. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 442-445.

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