Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 21 de junho de 2014

Milton Hatoum – “Dois Irmãos”


MILTON, Hatoum. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (10ª reimpressão, Companhia de Bolso)

A resgatar o tema da cizânia entre irmãos, tão antigo quanto o que se narra em Caim x Abel ou Esaú x Jacó, “Dois Irmãos”, segundo romance de Milton Hatoum – de ascendência libanesa, como os personagens principais de sua história –, retrata a relação inconciliável entre os filhos de Halim e Zana, os gêmeos Omar e Yaqub, os quais, conjuntamente a outros personagens que lhes são próximos, compõem uma espécie de família culturalmente mista, na Manaus do século passado. O enredo, ambientado sob o peso ubíquo da flora e da fauna amazônicas, é narrado pelo personagem Nael, cujo pai lhe é desconhecido, pois sua mãe, Domingas, reluta em lhe contar, objetivamente, qual dos filhos de Zana é o seu genitor. Num fluxo de memória ao melhor estilo machadiano, Nael investiga as relações mantidas por cada uma das duplas mais próximas Halim e Yakub e, sobretudo, Zana e Omar, para, nas entrelinhas, perscrutar o sentido de sua própria existência, marcada pelo vazio e por incertezas: “Alguns de nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos”.

Súmula da Obra

A história tem início com o retorno de um dos filhos gêmeos do casal, Yakub, que havia sido enviado aos treze anos para o Líbano, pouco antes da 2GM, para que se atenuassem as intrigas manifestas em relação ao seu irmão caçula, Omar, considerado instável e de temperamento mais revolto.

Agora já mais amadurecido, sisudo e misterioso, Yakub parte para São Paulo, dispensando a provisão financeira dos pais, onde se forma em Engenharia Civil e se casa com Lívia, a mesma jovem que anos antes teria sido o motivo da briga que resultou num corte no rosto do seu agora esposo, em ação impulsiva de Omar, munido de um gargalo de garrafa.

Depois de uma sucessão de ações desregradas, bebedeiras e escarcéus, Omar é mandado a São Paulo, na tentativa de que trilhasse o bom caminho. Mas tal não aconteceu: tendo ciência do casamento do irmão com Lívia, danificou-lhe as fotos do álbum do matrimônio e, em seguida, subtrai-lhe algum dinheiro que lhe permitiu partir para os EUA.

Retornando a Manaus, e com o falecimento do pai, Omar faz amizade com o investidor indiano Rochiram, desejoso de construir um hotel na capital amazonense. Buscando reconciliar os filhos, Zana escreve a Yakub, que, contudo, vai até a capital amazonense de forma alheia aos interesses do irmão. Julgando-se traído, Omar agride Yaqub, fato que o leva à prisão por alguns anos.

Com o fracasso dos negócios, Rochiram exige que Rânia, a irmã dos gêmeos, venda a casa onde vivem para saldas as dívidas que restaram. No local, instala-se a “Casa Rochiram”, uma loja de importados de Miami e Panamá, no mesmo terreno em que, ao fundo, passou a residir Nael, num pequeno quarto que lhe foi reservado como “herança”.

Milton Hatoum
(n. 1952)

Seleção de Passagens

“Zana culpava Halim pela falta de mão firme na educação dos gêmeos. Ele discordava: “Nada disso, tu tratas o Omar como se ele fosse nosso único filho” (p. 22).

“Domingas aderiu ao ritual de cada noite. Minha mãe também queria o Omar de volta? Eu notava nela um desejo, uma ânsia que ela sabia esconder, uma sombra no sentimento. Ela me deixava na dúvida, me desnorteava quando lamentava a ausência do Caçula. Ah, a falta que lhe fazia o corpo do galã desmaiado na rede! O suor ralo dos drinques e coquetéis, e o suadouro espesso, com seu cheiro mareante de bebida forte e amarga, nhaca de pelame de jaguar. As mãos dela enxugando-lhe o rosto, o pescoço, o peito cabeludo. Ele, quase nu, esparramado na rede vermelha. Os chumaços de formigas-de-fogo, batalhões de amarelo vivo cercando as garrafas de rum e uísque no chão de cimento. O cheiro de arnica, banha de cacau e óleo de copaíba nos hematomas que manchavam o corpo de Omar. Esses cheiros e outros: o das folhas grandes da fruta-pão, semelhantes a abanos verdes; o do cupuaçu pesado e maduro, cofre de veludo ocre que protege a polpa prateada, fonte de raro perfume. As folhas molhadas com que ela cobria as partes roxas do corpo dele; o suco de cupuaçu com caroços para chupar que ela lhe preparava no meio da tarde, quando, revigorado, ele abria os braços para minha mãe e beijava-lhe o rosto com intimidade, antes de sorver a bebida espessa” (p. 110-111).

“Mas o teu filho [Omar] topa todas, Halim. Colha a orquídea mais rara, mas também arranca a aninga da lama” (p. 119).

No momento de passamento de Domingas, quando revela-se pela primeira e única vez o nome do narrador, Nael, seu filho, esta lhe murmura “(...) que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. ‘Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (p. 180).

“A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos neste mundo não foram menos danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada. Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos. Halim, minha mãe. Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns de nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos” (p. 196).

“Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão. Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora” (p. 198).

Comentários

É praticamente impossível não associar a história de Hatoum às passagens bíblicas a que faço referência na ementa da obra, no início desta postagem. Omar e Yakub são como os dois rios imiscíveis na confluência de Manaus, o Solimões e o Negro, cujas águas não se mesclam. É ali que o enredo, arquetipicamente universal, se desenrola em toda a sua sensualidade.

Omar – como se fosse Caim – e Yakub – como Abel – têm comportamentos muito distintos: o primeiro passa a vida enredado com consortes e amásias, sendo resgatado, a cada vez, pela atenção de Zana; o segundo, mais centrado, torna-se engenheiro em São Paulo, adotando um ar de mistério e, ao que se sabe, de certa vingança, em especial depois das agressões perpretadas por Omar.

Passaram-se três décadas, momento em que quase todos já estão mortos, quando então Nael – o “herdeiro” da família e, metaforicamente, de toda a Manaus decadente da época, depois do surto enriquecedor do “Ciclo da Borracha” – resolve revirar a memória, para nos trazer os fatos ora descritos, que não são mera alegoria, haja vista que tudo faz sentido dentro de um contexto histórico e cultural do país: referências ao ambiente político repressivo, com o advento da “Revolução de 64”, aparecem com vigor nas páginas do Capítulo 7 do romance, nas quais se descreve a morte de Laval, um dos personagens laterais da obra.

Há nas entrelinhas de “Dois Irmãos” quase que uma inevitabilidade trágica, de certo modo germana do determinismo naturalístico de um Inglês de Souza, em “O Missionário”, outra famosa obra também ambientada no coração da selva amazônica.

Mas o romance de Hatoum, sem os reducionismos da Escola Naturalista, pareceu-me melhor construído: ele “ensopa” a alma do leitor com o ambiente úmido da floresta; com as emoções, afetos e discórdias no âmbito familiar; com o letargo fluir do tempo, irreversível, onde todos estamos imersos e em cujo fluxo, num interregno no qual a memória ousa ser consciência, a história integral de nossas vidas ressurge numa síntese consistente, para logo depois extinguir-se como se uma névoa etérea e volátil fosse.

Para mim, que sou um amazônida, uma obra marcante, em especial porque fez-me rememorar o ambiente da vasta região, bem assim o linguajar com o seu vocabulário muito característico!

J.A.R. – H.C.

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