Monroeville
Old Monroe Courthouse
Um dos poucos livros da autora norte-americana Harper Lee, se não for o
único, “To Kill a Mockingbird” aparece com frequência em listas das obras
literárias mais lidas nos EUA. Vencedor do Prêmio Pulitzer de 1961, é uma
história que aborda o amadurecimento de crianças, em especial os filhos do
advogado viúvo Atticus Finch – Jem, um garoto de 10 a 13 anos à época dos fatos,
e Scout, uma pouco mais nova e que os narra –, mas é, sobretudo, o enredo da discriminação
contra os negros em uma cidadezinha hipotética no sul dos Estados Unidos,
Maycomb (Alabama), lá pelos anos 30 do século passado.
O livro, escrito nos idos de 60, teve o título vertido ao português, no Brasil,
como “O Sol É Para Todos”, obviamente não uma tradução literal da expressão em
inglês, mas uma versão que retrata o sentido de interpretação que se extrai do
enredo. A tradução literal seria como que “Matar um Rouxinol” (ou uma cotovia,
ou melhor assim, um pássaro cuja espécie não é comum neste torrão).
Lee faz alusões ao pássaro a cada vez que procura denotar um sentido
ético nos eventos que descreve pouco a pouco: decerto o negro Tom Robinson, o
acusado do caso, é o exemplo mais nítido da alegoria configurada pelo pássaro, inocente
e inofensivo.
O tema do racismo, embora hoje um pouco mais atenuado na sociedade
americana – basta ver que Barack Obama, um presidente de cor, seria impensável
no começo dos anos 30! –, mereceu incursões judiciárias candentes ao longo
desse tempo, e, para quem tem interesses na seara legal, se poderia sugerir a
leitura de obras que retratassem a ascensão dos “Movimentos dos Direitos Civis”
nos EUA, de onde emergiram figuras negras de destaque como Luther King e
Malcolm X, aliás, ambos assassinados, como o negro de Lee, ao tentar fugir da
“gaiola” que o aprisionava.
O tema sempre leva a reflexões que engendram miríades de controvérsias
aqui no Brasil, com alguns chegando a negar a existência de processos
discriminatórios nestas plagas. Outros interpretam a concentração de renda
pernóstica do país como uma questão de binômio “ricos x pobres” e não entre “brancos
x negros” ou “homens x mulheres”. Contudo, o impacto estatístico é
sobranceiramente desfavorável aos negros!
Argumentos de justiça, obviamente originários da filosofia política,
sempre são avocados pelas partes para justificar determinadas linhas de ação,
sejam elas de vocação liberal, libertária, neomarxista, feminista ou de outras tendências.
Seja como for, neste momento, as políticas governamentais têm dado maior ênfase
à implementação de ações afirmativas, em especial as voltadas à educação em
instituições públicas de ensino superior. Penso que isso não seja nenhum favor
para um componente de nossa população que supera a casa dos 50%, tanto mais se
levarmos em consideração que tais políticas, conforme se depreende das
convenções internacionais acolhidas pelo Brasil, não hão de se protrair
indefinidamente no tempo.
Se não for despropositado o comentário, poderia descrever um pouco de
minha experiência como jurado em doze sessões em que fui sorteado numa das
varas do tribunal do júri, em Belém do Pará: seria por acaso que nove dos réus
eram negros e sete moravam em bairros muito pobres da periferia da cidade? Que
100% deles eram homens entre vinte e trinta anos?
Tal evidência – a de que a Justiça brasileira, no âmbito penal, serve apenas
para aprisionar, majoritariamente, homens negros e pobres –, em meados da
primeira metade dos anos 90, firmou-me a convicção de que o ponto de partida
para essas pessoas deveria ser melhorado, elevado, estruturado – e nunca
peremptoriamente ignorado pelo Governo, em qualquer de suas três instâncias!
A igualdade que se deseja não é meramente uma igualdade legal, perante a
lei, mas uma igualdade formal, material, com oportunidades reais para todos. Por isso, selecionei o excerto abaixo, da obra sob epígrafe, para ilustrar o
que ora se propugna:
“Thomas Jefferson
disse uma vez que todos os homens são criados iguais, uma frase que os ianques
e certos membros do Executivo em Washington gostam muito de atirar em nossa
cara. Neste ano da graça de 1935, determinadas pessoas estão com uma tendência
para utilizar essa frase fora de propósito, aplicando-a em todas as situações.
O exemplo mais ridículo que me ocorre agora é o dos indivíduos encarregados da
educação pública que estão aprovando os estúpidos e os ociosos juntamente com
os diligentes – porque todos os homens são criados iguais, dirão os educadores
com ar solene, as crianças são promovidas de série sofrerão um terrível
sentimento de inferioridade. Mas nós sabemos que todos os homens não nascem
iguais, não no sentido que algumas pessoas querem nos impingir: alguns são mais
espertos do que outros, alguns têm melhores oportunidades porque nasceram com
elas, alguns homens fazem mais dinheiro do que outros, algumas senhoras fazem
bolos mais gostosos do que outras, algumas pessoas nascem com talentos muito
superiores aos do normal dos homens” (LEE, 2007, p. 263).
Para dar contornos finais a esta postagem, gostaria ainda de sugerir
outra obra literária de destaque, a abordar também o problema da
discriminação, seja esta sorrateira ou brutalmente explícita: “O Homem Invisível”, de Ralph
Ellison, com toda a força de seu virtuosismo verbal, num retrato que enquadra a
exploração, a manipulação e a hipocrisia no cerne da sociedade norte-americana.
Leia ambas as obras mencionadas, internauta. Depois me fale das suas impressões!
J.A.R. – H.C.
Nelle Harper Lee
(n. 1926)
Referência:
LEE, Harper. O sol é para todos. Tradução de Maria Aparecida Nóbrega de Moraes
Rego. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
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