Assim como em inglês – idioma no qual há inúmeras traduções para o mesmo
poema (veja, por exemplo, este
endereço) –, o poema em epígrafe, a depender da versão de “As Flores do Mal”,
de Baudelaire, pode mesmo ter até uma numeração diferente. É o caso da versão
brasileira da obra, em tradução de Ivan Junqueira, cuja numeração,
distintamente da que lhe atribui Jamil Almansur Haddad – LXXVIII –, exibe o romano LXXV.
Mas o que queremos mesmo evidenciar nesta postagem são exatamente os
esforços de três tradutores e poetas pátrios – Jamil Almansur Haddad, Ivan Junqueira e Guilherme
de Almeida –, para verter ao português, mantendo o ritmo, a métrica e o esquema
de rimas do poema original de Baudelaire.
Para tanto, a disposição que segue orienta-se a
apresentar ao leitor: (i) de início, o original em francês do soneto; (ii)
posteriormente, em tradução própria, o poema em português, em sua literalidade,
desembaraçado, portanto, de seus gabaritos originais, para que se depreenda tão
apenas o sentido de sua mensagem; (iii) em seguida, a versão de Jamil Almansur
Haddad; (iv) idem, a de Ivan Junqueira; e, por fim, (v) a de Guilherme de
Almeida.
Com efeito, nota-se, em duas dessas traduções, algum avanço de interpretação
em relação ao original, relativamente aos atributos corporais do felino: apenas
Almansur manteve-os tal qual o que se extrai do poema de Baudelaire – magro e
sarnoso (ou sarnento) –, texto que avançou a “flácido e asqueroso” em
Junqueira, e “corpo de leproso” em Almeida.
Parece-me que ser magro não é sinônimo de ser flácido – apenas em alguns
casos há relação –, mas de ser descarnado, franzino e, talvez com mais propriedade
em relação ao poema, esquelético por se alimentar mal; tampouco de ser leproso –
um avanço irremediável. E “sarnento”... poderia mesmo ser correlato, ou melhor,
ter relação direta com “asqueroso”? Talvez sim, embora não sejam adjetivos nominalmente
sinônimos.
Conclusão: ficou-me a impressão de que a tradução de Junqueira fluiu mais no
campo das ideias que no do literal, porque se dissermos a alguém que há um animal
magro e sarnento em algum lugar, não será assim tão diferente de o
qualificarmos como sendo flácido e asqueroso: não quereríamos sequer chegar
muito perto (rs)!
Apenas esses exemplos bastam para retratar o enorme problema que é
traduzir uma peça literária de um idioma
estrangeiro, tanto mais árdua se estiver fixada em algum modelo de rimas e de
métrica. A necessidade de o manter leva a algumas recriações que afastam a
versão do seu original. Ou seja, a tradução ganha, dir-se-ia assim, autonomia,
voo próprio!
Daí porque julgo mais oportuna a edição de obras bilíngues, porque então
o leitor terá a capacidade de contemplar a criação em sua forma primeva, ao mesmo
tempo que será o apreciador e crítico dos trabalhos do tradutor.
O que acha você, internauta? Qual tradução, entre as três apresentadas
com métrica e rima, pareceu-lhe, ao mesmo tempo, a de melhor ritmo e estética,
e, muito importante, mais fiel ao original de Baudelaire?
J.A.R. – H.C.
Baudelaire
Henri Fantin-Latour
(1836-1904)
Spleen
(Original
em Francês)
Pluviôse, irrité
contre la ville entière,
De son urne à grands flots verse un froid ténébreux
Aux pâles habitants du voisin cimetière
Et la mortalité sur les faubourgs brumeux.
Mon chat sur le carreau cherchant une litière
Agite sans repos son corps maigre et galeux;
L’âme d’un vieux poète erre dans la gouttière
Avec la triste voix d’un fantôme frileux.
Le bourdon se lamente, et la bûche enfumée
Accompagne en fausset la pendule enrhumée
Cependant qu’en un jeu plein de sales parfums,
Héritage fatal d’une
vieille hydropique,
Le beau valet de
coeur et la dame de pique
Causent sinistrement de leurs amours défunts.
Kitten Playing with a Mouse
Horatio Henry
Couldery
(1832-1893)
Spleen (Tradução Literal)
Pluvioso, irritado
contra a cidade inteira,
De sua urna em
grandes ondas verte um frio tenebroso
Sobre os pálidos
habitantes do vizinho cemitério
E a mortalidade sobre
os arrabaldes brumosos.
Meu gato sobre o
ladrilho buscando uma liteira
Agita sem repouso seu
corpo magro e sarnoso;
A alma de um velho
poeta erra pela goteira
Com a triste voz de um
fantasma friorento.
O bordão se lamenta,
e o lenho enfumaçado
Acompanha em falsete o
pêndulo roufenho
Enquanto que num maço
de naipes de ominosos perfumes,
Herança fatal de uma
velha hidrópica,
O belo valete de paus
e a dama de espadas
Falam sinistramente
de seus amores defuntos.
Jamil A. Haddad
(1914-1988)
LXXVIII – Spleen (Tradução de Jamil Almansur Haddad)
Pluviose, a
erguer-se, e contra a cidade irritado,
Despeja de sua urna
um frio tenebroso
Pelas habitações do
cemitério ao lado,
E a morte nos desvãos
do arrabalde brumoso.
Meu gato, no ladrilho
a buscar uma esteira,
Agita sem cessar
corpo magro e sarnento;
A alma de um velho
poeta erra pela goteira
Com a tristonha voz
de um fantasma friorento.
Lamenta-se o
moscardo, e a lenha quase agônica
Acompanha em falsete
uma pêndula afônica,
Enquanto que num
jogo, a arder de imundo olor,
Como herança fatal de
velhas entravadas,
O valete de paus com
a dama de espadas
Falam na perdição de
seu defunto amor.
Ivan Junqueira
(n. 3/11/34)
LXXV – Spleen (Tradução de Ivan
Junqueira)
Pluviôse, contra toda
a cidade irritado,
De sua urna verte um
frio tenebroso
Sobre os que moram
sós no cemitério ao lado,
E entorna a morte no
subúrbio nebuloso.
Meu gato em busca de
onde estar aconchegado
Agita inquieto o
corpo flácido e asqueroso;
A alma de um velho
poeta erra pelo telhado,
Com a lúgubre voz de
um fantasma brumoso.
O bordão se lamenta,
e a tíbia acha de lenha
Acompanha em falsete
a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho,
entre ácidos odores,
Herança de uma velha
hidrópica e entrevada,
Um valete e uma dama,
em sinistra jogada,
Vão lembrando entre
si seus defuntos amores.
Guilherme de Almeida
(1890-1969)
XIII – Spleen (Tradução de
Guilherme de Almeida)
Pluviôse, contra toda
a cidade irritado,
De sua urna despeja
um frio tenebroso
Aos pálidos e sós do
cemitério ao lado
E a mortandade a cada
arrabalde brumoso.
Meu gato procurando
cama no acolchoado
Agita sem cessar seu
corpo de leproso;
A alma de um velho
poeta erra pelo telhado
Com sua triste voz de
fantasma chuvoso.
O bordão se lamenta,
e, chiando, a acha de lenha
Acompanha em falsete
a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho,
entre maus cheiros juntos,
Herança de uma velha
hidrópica, parente,
Uma dama e um valete
vão, sinistramente,
Recordando entre si
seus amores defuntos.
Referências:
BAUDELAIRE,
Charles. XIII – Spleen. In: __________. Flores das flores do mal.
Tradução de Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. (Coleção
Universidade). p. 88-90.
BAUDELAIRE,
Charles. LXXV – Spleen. In: __________. Flores
do mal. Edição bilíngue. Tradução de Ivan Junqueira. 1. ed. especial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 268-269. (40 anos, 40 livros)
BAUDELAIRE,
Charles. LXXVIII – Spleen. In: __________. As flores do mal.
Tradução de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 209.
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