Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O “Spleen” de Baudelaire: dilema nas traduções

Assim como em inglês – idioma no qual há inúmeras traduções para o mesmo poema (veja, por exemplo, este endereço) –, o poema em epígrafe, a depender da versão de “As Flores do Mal”, de Baudelaire, pode mesmo ter até uma numeração diferente. É o caso da versão brasileira da obra, em tradução de Ivan Junqueira, cuja numeração, distintamente da que lhe atribui Jamil Almansur Haddad – LXXVIII –, exibe o romano LXXV.

Mas o que queremos mesmo evidenciar nesta postagem são exatamente os esforços de três tradutores e poetas pátrios – Jamil Almansur Haddad, Ivan Junqueira e Guilherme de Almeida –, para verter ao português, mantendo o ritmo, a métrica e o esquema de rimas do poema original de Baudelaire.

Para tanto, a disposição que segue orienta-se a apresentar ao leitor: (i) de início, o original em francês do soneto; (ii) posteriormente, em tradução própria, o poema em português, em sua literalidade, desembaraçado, portanto, de seus gabaritos originais, para que se depreenda tão apenas o sentido de sua mensagem; (iii) em seguida, a versão de Jamil Almansur Haddad; (iv) idem, a de Ivan Junqueira; e, por fim, (v) a de Guilherme de Almeida.

Com efeito, nota-se, em duas dessas traduções, algum avanço de interpretação em relação ao original, relativamente aos atributos corporais do felino: apenas Almansur manteve-os tal qual o que se extrai do poema de Baudelaire – magro e sarnoso (ou sarnento) –, texto que avançou a “flácido e asqueroso” em Junqueira, e “corpo de leproso” em Almeida.

Parece-me que ser magro não é sinônimo de ser flácido – apenas em alguns casos há relação –, mas de ser descarnado, franzino e, talvez com mais propriedade em relação ao poema, esquelético por se alimentar mal; tampouco de ser leproso – um avanço irremediável. E “sarnento”... poderia mesmo ser correlato, ou melhor, ter relação direta com “asqueroso”? Talvez sim, embora não sejam adjetivos nominalmente sinônimos.

Conclusão: ficou-me a impressão de que a tradução de Junqueira fluiu mais no campo das ideias que no do literal, porque se dissermos a alguém que há um animal magro e sarnento em algum lugar, não será assim tão diferente de o qualificarmos como sendo flácido e asqueroso: não quereríamos sequer chegar muito perto (rs)!

Apenas esses exemplos bastam para retratar o enorme problema que é traduzir uma peça literária  de um idioma estrangeiro, tanto mais árdua se estiver fixada em algum modelo de rimas e de métrica. A necessidade de o manter leva a algumas recriações que afastam a versão do seu original. Ou seja, a tradução ganha, dir-se-ia assim, autonomia, voo próprio!

Daí porque julgo mais oportuna a edição de obras bilíngues, porque então o leitor terá a capacidade de contemplar a criação em sua forma primeva, ao mesmo tempo que será o apreciador e crítico dos trabalhos do tradutor.

O que acha você, internauta? Qual tradução, entre as três apresentadas com métrica e rima, pareceu-lhe, ao mesmo tempo, a de melhor ritmo e estética, e, muito importante, mais fiel ao original de Baudelaire?

J.A.R. – H.C. 
Baudelaire
Henri Fantin-Latour
(1836-1904)

Spleen (Original em Francês)

Pluviôse, irrité contre la ville entière,
De son urne à grands flots verse un froid ténébreux
Aux pâles habitants du voisin cimetière
Et la mortalité sur les faubourgs brumeux.

Mon chat sur le carreau cherchant une litière
Agite sans repos son corps maigre et galeux;
L’âme d’un vieux poète erre dans la gouttière
Avec la triste voix d’un fantôme frileux.

Le bourdon se lamente, et la bûche enfumée
Accompagne en fausset la pendule enrhumée
Cependant qu’en un jeu plein de sales parfums,

Héritage fatal d’une vieille hydropique,
Le beau valet de coeur et la dame de pique
Causent sinistrement de leurs amours défunts.

Kitten Playing with a Mouse
Horatio Henry Couldery
(1832-1893)

Spleen (Tradução Literal)

Pluvioso, irritado contra a cidade inteira,
De sua urna em grandes ondas verte um frio tenebroso
Sobre os pálidos habitantes do vizinho cemitério
E a mortalidade sobre os arrabaldes brumosos.

Meu gato sobre o ladrilho buscando uma liteira
Agita sem repouso seu corpo magro e sarnoso;
A alma de um velho poeta erra pela goteira
Com a triste voz de um fantasma friorento.

O bordão se lamenta, e o lenho enfumaçado
Acompanha em falsete o pêndulo roufenho
Enquanto que num maço de naipes de ominosos perfumes,

Herança fatal de uma velha hidrópica,
O belo valete de paus e a dama de espadas
Falam sinistramente de seus amores defuntos.

Jamil A. Haddad
(1914-1988)

LXXVIII – Spleen (Tradução de Jamil Almansur Haddad)

Pluviose, a erguer-se, e contra a cidade irritado,
Despeja de sua urna um frio tenebroso
Pelas habitações do cemitério ao lado,
E a morte nos desvãos do arrabalde brumoso.

Meu gato, no ladrilho a buscar uma esteira,
Agita sem cessar corpo magro e sarnento;
A alma de um velho poeta erra pela goteira
Com a tristonha voz de um fantasma friorento.

Lamenta-se o moscardo, e a lenha quase agônica
Acompanha em falsete uma pêndula afônica,
Enquanto que num jogo, a arder de imundo olor,

Como herança fatal de velhas entravadas,
O valete de paus com a dama de espadas
Falam na perdição de seu defunto amor.

Ivan Junqueira
(n. 3/11/34)

LXXV – Spleen (Tradução de Ivan Junqueira)

Pluviôse, contra toda a cidade irritado,
De sua urna verte um frio tenebroso
Sobre os que moram sós no cemitério ao lado,
E entorna a morte no subúrbio nebuloso.

Meu gato em busca de onde estar aconchegado
Agita inquieto o corpo flácido e asqueroso;
A alma de um velho poeta erra pelo telhado,
Com a lúgubre voz de um fantasma brumoso.

O bordão se lamenta, e a tíbia acha de lenha
Acompanha em falsete a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho, entre ácidos odores,

Herança de uma velha hidrópica e entrevada,
Um valete e uma dama, em sinistra jogada,
Vão lembrando entre si seus defuntos amores.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

XIII – Spleen (Tradução de Guilherme de Almeida)

Pluviôse, contra toda a cidade irritado,
De sua urna despeja um frio tenebroso
Aos pálidos e sós do cemitério ao lado
E a mortandade a cada arrabalde brumoso.

Meu gato procurando cama no acolchoado
Agita sem cessar seu corpo de leproso;
A alma de um velho poeta erra pelo telhado
Com sua triste voz de fantasma chuvoso.

O bordão se lamenta, e, chiando, a acha de lenha
Acompanha em falsete a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho, entre maus cheiros juntos,

Herança de uma velha hidrópica, parente,
Uma dama e um valete vão, sinistramente,
Recordando entre si seus amores defuntos.
Referências:

BAUDELAIRE, Charles. XIII – Spleen. In: __________. Flores das flores do mal. Tradução de Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. (Coleção Universidade). p. 88-90.

BAUDELAIRE, Charles. LXXV – Spleen. In: __________. Flores do mal. Edição bilíngue. Tradução de Ivan Junqueira. 1. ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 268-269. (40 anos, 40 livros)

BAUDELAIRE, Charles. LXXVIII – Spleen. In: __________. As flores do mal. Tradução de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 209.
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