Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Albert Camus – Dréan (Mondovi)

A Mesquita de Dréan (Mondovi) − Argélia

“L’Homme Révolté” (“O Homem Revoltado” - 1951), de autoria do escritor franco-argelino Albert Camus, é uma obra e tanto!

A força de sua permanência decorre, certamente, da capacidade de Camus em haver arregimentado as grandes linhas de força do pensamento europeu para ilustrar brilhantemente o arcabouço que houvera programado para desenvolver o tema da revolta, com suas derivações na história, na arte e na filosofia, ou melhor, neste último caso, mais especificamente na metafísica.

Os vários excertos a seguir transcritos, decerto, são traspassados das idiossincrasias deste que vos escreve, pois que revelam um modo particular de ler e assinalar aquilo que julgou relevante sob algum critério, seja estético, seja historiográfico, seja ainda filosófico ou outro qualquer. Obviamente, não há neutralidade nas escolhas. Fazer o quê? (rs).

J.A.R. – H.C. 
Albert Camus
(1913-1960)

O Homem Revoltado

“Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes” (CAMUS, 2011, p. 13).

“Sendo rara a força do amor, o crime continua excepcional, conservando desse modo o seu aspecto de transgressão. Mas a partir do momento em que, na falta do caráter, o homem corre para refugiar-se em uma doutrina, a partir do instante em que o crime é racionalizado, ele prolifera como a própria razão, assumindo todas as figuras do silogismo. Ele, que era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência. Ontem julgado, hoje faz a lei” (CAMUS, 2011, p. 13).

“Em outras palavras, o problema da revolta só parece assumir um sentido preciso no âmbito do pensamento ocidental. Poder-se-ia ainda ser mais explícito ao observar, com Scheler, que o espírito de revolta dificilmente se exprime nas sociedades em que as desigualdades são muito grandes (regime hindu de castas) ou, pelo contrário, naquelas em que a igualdade é absoluta (certas sociedades primitivas). Em sociedade, o espírito de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato. O problema da revolta, portanto, só faz sentido no interior de nossa sociedade ocidental” (CAMUS, 2011, p. 32-33).

“Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro avanço da mente que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos” (CAMUS, 2011, p. 35).

“O mundo é divino porque é fortuito. Por Isso, só a arte, por ser igualmente fortuita, é capaz de entendê-lo. Nenhum julgamento explica o mundo, mas a arte pode nos ensinar ii reproduzi-lo, assim como o mundo se reproduz ao longo dos retornos eternos. Na mesma beira de praia, o mar primordial repele incansavelmente as mesmas palavras e rejeita os mesmos seres espantados com a vida. Mas aquele que pelo menos consente em seu próprio retorno e no retorno de todas as coisas, que se faz eco e eco exaltado, participa da divindade do mundo” (CAMUS, 2011, p. 95).

“Aquele [Rimbaud] que exultava nos suplícios, que havia ofendido Deus e a beleza, que se armava contra a justiça e a esperança, que se fortalecia no duro ambiente do crime, quer apenas casar-se com alguém que “tenha futuro”. O mago, o vidente, o prisioneiro intratável, sobre o qual a prisão sempre volta a se fechar, o homem-rei da terra sem deuses, nunca deixa de carregar oito quilos de ouro em um cinto que lhe pesa no ventre e do qual se queixa, dizendo que provoca diarreia. Será esse o herói mítico que se propõe a tantos jovens, que não cospem no mundo, mas que morreriam de vergonha à simples ideia daquele cinto?” (CAMUS, 2011, p. 113).

“Quando se está seguro de que o amanhã, na própria ordem do mundo, será melhor do que hoje, é possível divertir-se em paz. O progresso, paradoxalmente, pode servir para justificar o conservantismo. Letra sacada contra a confiança no futuro, ele autoriza, desta forma, a boa consciência do senhor Ao escravo, àqueles cujo presente é miserável e que não têm nenhum consolo no céu, assegura-se que o futuro, pelo menos, é deles. O futuro é a única espécie de propriedade que os senhores concedem de bom grado aos escravos” (CAMUS, 2011, p. 226).

“Ele [Marx] colocou o trabalho, sua degradação injusta e sua dignidade profunda no centro de sua reflexão. Rebelou-se contra a redução do trabalho a uma mercadoria e do trabalhador a um objeto. Lembrou aos privilegiados que os seus privilégios não eram divinos, nem a propriedade um direito eterno. Ensejou um, sentimento de culpa àqueles que não tinham o direito de manter em paz a consciência e denunciou, com uma perspicácia inigualável, uma classe cujo crime não é tanto ter tido o poder, quanto tê-lo utilizado para os fins de uma sociedade medíocre e sem uma verdadeira nobreza” (CAMUS, 2011, p. 242).

Nós lhe [Marx] devemos uma ideia que é o desespero de nosso tempo – mas aqui o desespero vale mais do que qualquer esperança –, a ideia de que, quando o trabalho é uma degradação, ele não é vida, se bem que ocupe todo o tempo da vida. Quem, apesar das pretensões dessa sociedade, pode dormir em paz, sabendo que doravante ela tira seus prazeres medíocres do trabalho de milhões de almas mortas? Ao exigir para o trabalhador a verdadeira riqueza, que não é a do dinheiro, mas a do lazer ou da criação, ele reivindicou, a despeito das aparências, a qualidade do homem. Ao fazê-lo, podemos afirmar com convicção, ele não quis a degradação suplementar que foi imposta ao homem em seu nome. Uma de suas frases, clara e contundente, recusa para sempre aos seus discípulos triunfantes a grandeza e a humanidade que tinham sido suas: “Um fim que tem necessidade de meios injustos não é um fim justo” (CAMUS, 2011, p. 242-243).

“Neste sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade” (CAMUS, 2011, p. 300).

“Todos os grandes reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Cervantes, Molière e Tolstoi souberam criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e de dignidade que existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela. Sua regra, que contesta o real ao mesmo tempo em que lhe confere sua unidade, é também a da revolta. Pode-se recusar eternamente a injustiça sem deixar de saudar a natureza do homem e a beleza do mundo? Nossa resposta é sim. Esta moral, ao mesmo tempo insubmissa e fiel, é em todo o caso a única a iluminar o caminho de uma revolução verdadeiramente realista. Ao manter a beleza, preparamos o dia do renascimento em que a civilização colocará no centro de sua reflexão, longe dos princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude viva que fundamenta a dignidade comum do mundo e do homem, e que agora devemos definir diante de um mundo que a insulta” (CAMUS, 2011, p. 317).

“Não importa o que fizermos, a desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão. Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em nós mesmos e nos outros” (CAMUS, 2011, p. 345).

Referência:

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. 9. ed. São Paulo: Record, 2011.

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