A Mesquita de Dréan (Mondovi) − Argélia
“L’Homme Révolté” (“O Homem Revoltado” - 1951), de autoria do escritor
franco-argelino Albert Camus, é uma obra e tanto!
A força de sua permanência decorre, certamente, da capacidade de Camus em
haver arregimentado as grandes linhas de força do pensamento europeu para
ilustrar brilhantemente o arcabouço que houvera programado para desenvolver o
tema da revolta, com suas derivações na história, na arte e na filosofia, ou
melhor, neste último caso, mais especificamente na metafísica.
Os vários excertos a seguir transcritos, decerto, são traspassados das idiossincrasias deste que vos escreve, pois que revelam um modo particular de
ler e assinalar aquilo que julgou relevante sob algum critério, seja estético,
seja historiográfico, seja ainda filosófico ou outro qualquer. Obviamente, não
há neutralidade nas escolhas. Fazer o quê? (rs).
J.A.R. – H.C.
Albert Camus
(1913-1960)
O Homem Revoltado
“Há crimes de paixão e crimes de
lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela
premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos
criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do
amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode
servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes” (CAMUS, 2011,
p. 13).
“Sendo rara a força do amor, o crime
continua excepcional, conservando desse modo o seu aspecto de transgressão. Mas
a partir do momento em que, na falta do caráter, o homem corre para refugiar-se
em uma doutrina, a partir do instante em que o crime é racionalizado, ele
prolifera como a própria razão, assumindo todas as figuras do silogismo. Ele,
que era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência. Ontem julgado,
hoje faz a lei” (CAMUS, 2011, p. 13).
“Em outras palavras, o problema da
revolta só parece assumir um sentido preciso no âmbito do pensamento ocidental.
Poder-se-ia ainda ser mais explícito ao observar, com Scheler, que o espírito
de revolta dificilmente se exprime nas sociedades em que as desigualdades são
muito grandes (regime hindu de castas) ou, pelo contrário, naquelas em que a
igualdade é absoluta (certas sociedades primitivas). Em sociedade, o espírito
de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes
desigualdades de fato. O problema da revolta, portanto, só faz sentido no
interior de nossa sociedade ocidental” (CAMUS, 2011, p. 32-33).
“Na experiência do absurdo, o
sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a
consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro avanço da mente
que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse
sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade,
sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que
apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a
revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a
primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é
um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto,
logo existimos” (CAMUS, 2011, p. 35).
“O mundo é divino porque é fortuito.
Por Isso, só a arte, por ser igualmente fortuita, é capaz de entendê-lo. Nenhum
julgamento explica o mundo, mas a arte pode nos ensinar ii reproduzi-lo, assim
como o mundo se reproduz ao longo dos retornos eternos. Na mesma beira de
praia, o mar primordial repele incansavelmente as mesmas palavras e rejeita os
mesmos seres espantados com a vida. Mas aquele que pelo menos consente em seu
próprio retorno e no retorno de todas as coisas, que se faz eco e eco exaltado,
participa da divindade do mundo” (CAMUS, 2011, p. 95).
“Aquele [Rimbaud] que exultava nos
suplícios, que havia ofendido Deus e a beleza, que se armava contra a justiça e
a esperança, que se fortalecia no duro ambiente do crime, quer apenas casar-se
com alguém que “tenha futuro”. O mago, o vidente, o prisioneiro intratável,
sobre o qual a prisão sempre volta a se fechar, o homem-rei da terra sem
deuses, nunca deixa de carregar oito quilos de ouro em um cinto que lhe pesa no
ventre e do qual se queixa, dizendo que provoca diarreia. Será esse o herói
mítico que se propõe a tantos jovens, que não cospem no mundo, mas que
morreriam de vergonha à simples ideia daquele cinto?” (CAMUS, 2011, p. 113).
“Quando se está seguro de que o amanhã,
na própria ordem do mundo, será melhor do que hoje, é possível divertir-se em
paz. O progresso, paradoxalmente, pode servir para justificar o conservantismo.
Letra sacada contra a confiança no futuro, ele autoriza, desta forma, a boa
consciência do senhor Ao escravo, àqueles cujo presente é miserável e que não
têm nenhum consolo no céu, assegura-se que o futuro, pelo menos, é deles. O
futuro é a única espécie de propriedade que os senhores concedem de bom grado
aos escravos” (CAMUS, 2011, p. 226).
“Ele [Marx] colocou o trabalho, sua
degradação injusta e sua dignidade profunda no centro de sua reflexão.
Rebelou-se contra a redução do trabalho a uma mercadoria e do trabalhador a um
objeto. Lembrou aos privilegiados que os seus privilégios não eram divinos, nem
a propriedade um direito eterno. Ensejou um, sentimento de culpa àqueles que
não tinham o direito de manter em paz a consciência e denunciou, com uma
perspicácia inigualável, uma classe cujo crime não é tanto ter tido o poder,
quanto tê-lo utilizado para os fins de uma sociedade medíocre e sem uma verdadeira
nobreza” (CAMUS, 2011, p. 242).
Nós lhe [Marx] devemos uma ideia que
é o desespero de nosso tempo – mas aqui o desespero vale mais do que qualquer esperança
–, a ideia de que, quando o trabalho é uma degradação, ele não é vida, se bem
que ocupe todo o tempo da vida. Quem, apesar das pretensões dessa sociedade,
pode dormir em paz, sabendo que doravante ela tira seus prazeres medíocres do
trabalho de milhões de almas mortas? Ao exigir para o trabalhador a verdadeira riqueza,
que não é a do dinheiro, mas a do lazer ou da criação, ele reivindicou, a
despeito das aparências, a qualidade do homem. Ao fazê-lo, podemos afirmar com
convicção, ele não quis a degradação suplementar que foi imposta ao homem em
seu nome. Uma de suas frases, clara e contundente, recusa para sempre aos seus
discípulos triunfantes a grandeza e a humanidade que tinham sido suas: “Um fim
que tem necessidade de meios injustos não é um fim justo” (CAMUS, 2011, p.
242-243).
“Neste sentido, cada qual procura fazer
de sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor dure e sabemos que ele não
dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria
ainda incompleto. Talvez, nesta insaciável necessidade de durar,
compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece
que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que
com o fato de ele não durar Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento
constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um
dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível
vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem
mais sentido que a felicidade” (CAMUS, 2011, p. 300).
“Todos os grandes reformadores tentam
construir na história o que Shakespeare, Cervantes, Molière e Tolstoi souberam
criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e de dignidade que
existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas
chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela. Sua regra, que contesta
o real ao mesmo tempo em que lhe confere sua unidade, é também a da revolta.
Pode-se recusar eternamente a injustiça sem deixar de saudar a natureza do homem
e a beleza do mundo? Nossa resposta é sim. Esta moral, ao mesmo tempo
insubmissa e fiel, é em todo o caso a única a iluminar o caminho de uma
revolução verdadeiramente realista. Ao manter a beleza, preparamos o dia do
renascimento em que a civilização colocará no centro de sua reflexão, longe dos
princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude viva que fundamenta
a dignidade comum do mundo e do homem, e que agora devemos definir diante de um
mundo que a insulta” (CAMUS, 2011, p. 317).
“Não importa o que fizermos, a
desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão.
Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as
nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los
em nós mesmos e nos outros” (CAMUS, 2011, p. 345).
Referência:
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. 9. ed. São Paulo:
Record, 2011.
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