Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 22 de junho de 2014

Um Saco de Gatos: Poesia, Ciência, Filosofia e Teologia

Num interessante poema do novelista italiano Ennio Flaiano, tem-se a caracterização do que se seriam, em grandes linhas, os padrões de método e de raciocínio da Ciência, da Filosofia e da Teologia, três instâncias do humano que, inúmeras vezes, acabam por divergir sobre o mesmo tema.

No caso, o assunto é um simples gato num compartimento escuro: o cientista, segundo Flaiano, por meio de experimentos e empregando um método dedutivo, infere que, sendo o quarto escuro, o gato também o é, talvez querendo o poeta, dessa maneira, aludir ao caráter precário das teorias científicas, válidas até que refutáveis por um caso concreto que as contraria, tal como o propôs o teórico vienense Karl Popper por meio de sua “tese da falseabilidade”, na linha do positivismo lógico.

O filósofo, por sua vez, emprega a lógica nos raciocínios para perseguir o mesmo gato, felino que, para Flaiano, não existe, o que denuncia níveis de elucubrações para além do mundo tangível, ou como se diz no próprio ramo da Filosofia, na esfera da Metafísica.

Já o teólogo, também “navegando” na imaterialidade da Metafísica, busca alcançar o mesmo gato, e afirma que o encontrou mesmo que não o tenha avistado, ou melhor, lhe posto as mãos sobre o torso: trata-se de uma questão de fé, pela adoção de propostas dogmáticas.

Vamos ao poema...

Ennio Flaiano
(1910-1972)

Il Gatto

Lo Scienziato cerca un gatto,
un gatto nascosto
in una stanza buia.
Non lo trova ma…
ma ne deduce che è nero.

Il Filosofo cerca un gatto,
un gatto che non c’è
in una stanza buia.
Non lo trova ma…
ma continua a cercare.

Il Teologo, oh il Teologo
cerca lo stesso gatto.
Non lo trova ma…
ma dice di averlo trovato.



O Gato

O Cientista procura por um gato,
um gato escondido
num quarto escuro.
Não o encontra, mas...
ainda assim deduz que é negro.

O Filósofo procura por um gato,
um gato que não existe
num quarto escuro.
Não o encontra, mas...
ainda assim continua a procurar.

O Teólogo, oh o Teólogo
procura pelo mesmo gato.
Não o encontra, mas...
ainda assim afirma que o encontrou.

Ainda há mais, contudo: Jorge Wagensberg vislumbra diferenças entre a Ciência, cuja fronteira se conforma ao dilema do que seja verdadeiro em contraposição ao falso, e a Ética, ramo da Filosofia, que busca separar o bom e o mau. E o que seria, então, a Ética Científica? Segundo o autor espanhol, uma “complexa combinação de verdadeiro, falso, bom e mau”:

A ciência é uma questão de fronteira, da fronteira que separa o verdadeiro do falso. A ética é uma questão de fronteira, mas da que separa o bom do mau. E a ética científica é uma questão de fronteira, da complexa combinação de verdadeiro, falso, bom e mau. Há conceitos simples com fronteiras nítidas (como as categorias no boxe olímpico: um peso-galo pode passar a peso-mosca só porque perde 1 grama de peso) e conceitos menos simples com fronteiras difusas (se arrancarmos os cabelos de um indivíduo um a um, a partir exatamente de qual pelo retirado ele se tornará calvo?). Para organizar nossa convivência cotidiana, precisamos de conceitos nítidos. A má notícia é que tudo o que afeta questões morais é complexo e difuso. Desmoralizamo-nos?

Talvez não, porque o grande desafio de uma ética científica não consiste em determinar com precisão onde estão suas fronteiras, mas sim em não as pisar. Quiçá seja a base da ética científica moderna: substituir as nunca bem conhecidas fronteiras difusas (reais) por algumas fronteiras nítidas (ideais) que sempre podem ser pactuadas. O compromisso é duplamente delicado porque, de um lado, ambas as fronteiras, as reais e as ideais, devem estar ao mesmo tempo perto o bastante e longe o bastante entre si. Longe o bastante para reduzir o risco de que alguém, por erro ou deslize, viole a difusa fronteira real. E perto o bastante para averiguar o conhecimento fronteiriço e seu possível benefício. Também é delicado porque as fronteiras do verdadeiro e do falso se movem muito mais rapidamente que as do bom e do mau. Como enfrentar tanta delicadeza? Habitando a fronteira (a fronteira não é terra de ninguém nem de nada, é terra de tudo). E por conversação, por delicada conversação massiva entre as investigações e as crenças que passeiam por elas (WAGENSBERG, 2009, p. 260-261).

O argumento de Wagensberg, aparentemente, passa por um consenso, em especial sobre os impasses da bioética, do emprego de células-tronco ou de outros que tais.

E noutra linha de embates, aparecem os assim chamados “Cavaleiros do Ateísmo” – Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris, são os nomes dos que me lembro de imediato –, a rejeitarem quaisquer fundamentos de ordem religiosa nos métodos para o conhecimento do mundo,  pois julgam poder explicar o domínio fenomênico tão apenas por meio da Ciência.

Pergunto eu, em meus limitados conhecimentos: seriam eles – e os cientistas, por extensão – assim tão capazes? Para que o leitor tenha noção dos argumentos levantados por tais autores, posto o vídeo abaixo, que, a meu ver, padece contudo de contra-argumentação, pois são os “quatro cavaleiros” dialogando pacificamente por uma mesma linha de raciocínio, sem réplicas.

J.A.R. – H.C.
Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo

Referência:

FLAIANO, Ennio. Opere scelte. A cura di Anna Longoni. 2. ed. Milano, IT:  Adelphi, 2010. p. 1127.

WAGENSBERG, Jorge. O gozo intelectual: teoria e prática sobre a inteligibilidade e a beleza. Tradução: Simone Mateos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
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