Num interessante poema do novelista italiano Ennio Flaiano, tem-se a
caracterização do que se seriam, em grandes linhas, os padrões de método e de
raciocínio da Ciência, da Filosofia e da Teologia, três instâncias do humano
que, inúmeras vezes, acabam por divergir sobre o mesmo tema.
No caso, o assunto é um simples gato num compartimento escuro: o cientista, segundo Flaiano, por meio de
experimentos e empregando um método dedutivo, infere que, sendo o quarto escuro,
o gato também o é, talvez querendo o poeta, dessa maneira, aludir ao caráter
precário das teorias científicas, válidas até que refutáveis por um caso
concreto que as contraria, tal como o propôs o teórico vienense Karl Popper por
meio de sua “tese da falseabilidade”, na linha do positivismo lógico.
O filósofo, por sua vez,
emprega a lógica nos raciocínios para perseguir o mesmo gato, felino que, para
Flaiano, não existe, o que denuncia níveis de elucubrações para além do mundo
tangível, ou como se diz no próprio ramo da Filosofia, na esfera da Metafísica.
Já o teólogo, também “navegando”
na imaterialidade da Metafísica, busca alcançar o mesmo gato, e afirma que o
encontrou mesmo que não o tenha avistado, ou melhor, lhe posto as mãos sobre o
torso: trata-se de uma questão de fé, pela adoção de propostas dogmáticas.
Vamos ao poema...
Ennio Flaiano
(1910-1972)
Il Gatto
Lo Scienziato cerca
un gatto,
un gatto nascosto
in una stanza buia.
Non lo trova ma…
ma ne deduce che è
nero.
Il Filosofo cerca un
gatto,
un gatto che non c’è
in una stanza buia.
Non lo trova ma…
ma continua a
cercare.
Il Teologo, oh il
Teologo
cerca lo stesso
gatto.
Non lo trova ma…
ma dice di averlo
trovato.
O Gato
O Cientista procura
por um gato,
um gato escondido
num quarto escuro.
Não o encontra,
mas...
ainda assim deduz que
é negro.
O Filósofo procura por
um gato,
um gato que não
existe
num quarto escuro.
Não o encontra, mas...
ainda assim continua
a procurar.
O Teólogo, oh o
Teólogo
procura pelo mesmo
gato.
Não o encontra,
mas...
ainda assim afirma que o
encontrou.
Ainda há mais, contudo: Jorge Wagensberg vislumbra diferenças entre a Ciência,
cuja fronteira se conforma ao dilema do que seja verdadeiro em contraposição ao
falso, e a Ética, ramo da Filosofia, que busca separar o bom e o mau. E o que
seria, então, a Ética Científica? Segundo o autor espanhol, uma “complexa
combinação de verdadeiro, falso, bom e mau”:
A ciência é uma
questão de fronteira, da fronteira que separa o verdadeiro do falso. A ética é
uma questão de fronteira, mas da que separa o bom do mau. E a ética científica
é uma questão de fronteira, da complexa combinação de verdadeiro, falso, bom e
mau. Há conceitos simples com fronteiras nítidas (como as categorias no boxe
olímpico: um peso-galo pode passar a peso-mosca só porque perde 1 grama de
peso) e conceitos menos simples com fronteiras difusas (se arrancarmos os
cabelos de um indivíduo um a um, a partir exatamente de qual pelo retirado ele
se tornará calvo?). Para organizar nossa convivência cotidiana, precisamos de
conceitos nítidos. A má notícia é que tudo o que afeta questões morais é
complexo e difuso. Desmoralizamo-nos?
Talvez não, porque o grande
desafio de uma ética científica não consiste em determinar com precisão onde
estão suas fronteiras, mas sim em não as pisar. Quiçá seja a base da ética científica
moderna: substituir as nunca bem conhecidas fronteiras difusas (reais) por
algumas fronteiras nítidas (ideais) que sempre podem ser pactuadas. O
compromisso é duplamente delicado porque, de um lado, ambas as fronteiras, as
reais e as ideais, devem estar ao mesmo tempo perto o bastante e longe o bastante
entre si. Longe o bastante para reduzir o risco de que alguém, por erro ou
deslize, viole a difusa fronteira real. E perto o bastante para averiguar o
conhecimento fronteiriço e seu possível benefício. Também é delicado porque as
fronteiras do verdadeiro e do falso se movem muito mais rapidamente que as do
bom e do mau. Como enfrentar tanta delicadeza? Habitando a fronteira (a
fronteira não é terra de ninguém nem de nada, é terra de tudo). E por
conversação, por delicada conversação massiva entre as investigações e as
crenças que passeiam por elas (WAGENSBERG, 2009, p. 260-261).
O argumento de Wagensberg, aparentemente, passa por um consenso, em especial
sobre os impasses da bioética, do emprego de células-tronco ou de outros que
tais.
E noutra linha de embates, aparecem os assim chamados “Cavaleiros do
Ateísmo” – Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris,
são os nomes dos que me lembro de imediato –, a rejeitarem quaisquer fundamentos
de ordem religiosa nos métodos para o conhecimento do mundo, pois julgam poder explicar o domínio
fenomênico tão apenas por meio da Ciência.
Pergunto eu, em meus limitados conhecimentos: seriam eles – e os
cientistas, por extensão – assim tão capazes? Para que o leitor tenha noção dos
argumentos levantados por tais autores, posto o vídeo abaixo, que, a meu ver,
padece contudo de contra-argumentação, pois são os “quatro cavaleiros” dialogando pacificamente por uma mesma linha de raciocínio, sem réplicas.
J.A.R. – H.C.
“Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo”
Referência:
FLAIANO, Ennio. Opere scelte. A cura di Anna Longoni. 2. ed. Milano, IT: Adelphi, 2010.
p. 1127.
WAGENSBERG, Jorge. O gozo intelectual: teoria e prática sobre a inteligibilidade e a beleza. Tradução: Simone Mateos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
WAGENSBERG, Jorge. O gozo intelectual: teoria e prática sobre a inteligibilidade e a beleza. Tradução: Simone Mateos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
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