Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Torquato Neto - era um pacato cidadão de roupa clara

Nestas linhas, o poeta parece questionar a fachada de respeitabilidade social de um “sujeito do bem”, o qual, de um “pacato cidadão” passou a ser visto como a “vergonha da família”, quando as contradições que lhe transpassavam o espírito vieram à tona e o seu mundo de aparências converteu-se em um pesadelo para os de casa.

 

Ressaltando a fragilidade do ser humano frente às expectativas e tensões da vida moderna, o poema, em boa parte, é uma crítica sutil à hipocrisia e às aparências enganosas da classe média tradicional, com o “seu ezequias” – frustrado e reprimido – a representar os valores e o modo de vida convencionais, até que o silencioso desconforto em seguir as regras que lhe foram impostas, de repente, se rompe e um comportamento violento, potencializado pelo consumo de álcool, passa a se manifestar, pondo tudo a perder.

 

J.A.R. – H.C.

 

Torquato Neto

(1944-1972)

 

era um pacato cidadão de roupa clara

 

era um pacato cidadão de roupa clara

seu terno, sua gravata lhe caíam bem

seu nome, que eu me lembre, era ezequias

casado, vacinado e sem ninguém.

brasileiro e eleitor, seu ezequias

reservista de terceira e com família

três filhos, prestações e alguns livros

(enciclopédias e biografias).

era um pacato cidadão de roupa clara

era um homem de bem que eu conhecia

cumpria seus deveres, trabalhava

chegava cedo, em casa de madrugada

lutando pelo pão de cada dia.

era um pacato cidadão de roupa clara

e todo dia passava e me dizia

que o mundo estava andando muito mal

eu perguntava por que, eu perguntava

seu ezequias nunca me explicava

apenas repetia

lá dentro do seu puro tropical

este mundo vai seguindo muito mal

este mundo, meu filho, vai seguindo muito mal.

ah, seu ezequias!

que pena, que desastre, que tragédia

que coisa aconteceu naquele dia

seu ezequias, ah, seu ezequias

saiu do emprego e foi tomar cachaça

e apenas de manhã voltou pra casa

batendo na mulher, xingando os filhos

seu ezequias, ah, seu ezequias

era um pacato cidadão de roupa clara

era um homem de bem que eu conhecia

e agora é a vergonha da família.

 

Homem jovem

(Don Faulkner: artista inglês)

 

Referência:

 

ARAÚJO NETO, Torquato Pereira de. era um pacato cidadão de roupa clara. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje: antologia. 6. ed. Rio de Janeiro, RJ: Aeroplano, 2007. p. 61-62.

 

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