Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Thomas Merton - Aubade-Harlem

Merton compendia nestes versos toda uma circunscrição oprimida por injustas desigualdades sociais e raciais no bairro novaiorquino do Harlem – historicamente um reduto afro-americano –, para o que emprega associações com imagens religiosas, sobretudo a da crucificação de Cristo, refletindo assim a tencionada visão do martírio simbólico das crianças que crescem naquele distrito, para quem o futuro se mostra refém de fartas incertezas.

 

A crítica do monge trapista dirige-se à indiferença, a incapacidade de empatia ou mesmo à cumplicidade das autoridades com tal contexto de exclusão, cristalizado, diga-se de passagem, num clima que evola o medo, o perigo e a violência do mundo das drogas, além do desalento e da desesperança daqueles que buscam um descortínio positivo para as suas vidas e que dificilmente o conseguem.

 

J.A.R. – H.C.

 

Thomas Merton

(1915-1968)

 

Aubade-Harlem (*)

 

for Baroness C. de Hueck

 

Across the cages of the keyless aviaries,

The lines and wires, the gallows of the broken kites,

Crucify, against the fearful light,

The ragged dresses of the little children.

 

Soon, in the sterile jungles of the waterpipes and ladders,

The bleeding sun, a bird of prey, will terrify the poor,

These will forget the unbelievable moon.

 

But in the cells of whiter buildings,

Where the glass dawn is brighter than the knives of surgeons,

Paler than alcohol or ether, shinier than Money,

The white men’s wives, like Pilate’s,

Cry in the peril of their frozen dreams:

 

“Daylight has driven iron spikes,

Into the flesh of Jesus’ hands and feet:

Four flowers of blood have nailed Him to the walls of Harlem.”

 

Along the white halls of the clinics and the hospitals

Pilate evaporates with a cry:

They have cut down two hundred Judases,

Hanged by the neck in the opera houses and the museum.

 

Across the cages of the keyless aviaries,

The lines and wires, the gallows of the broken kites,

Crucify, against the fearful light,

The ragged dresses of the little children.

 

In: “A Man in the Divided Sea” (1946)

 

Lua sobre o Harlem

(William Johnson: pintor afro-americano)

 

Aubade-Harlem

 

a Baroness C. de Hueck

 

Por entre as gaiolas dos aviários sem chaves,

As cordas e os arames, as armações de pipas despedaçadas,

Crucificam-se, sob a aterrorizante luz,

As roupas esfarrapadas das criancinhas.

 

Em breve, nas selvas estéreis de encanamentos e de escadas,

O sol sangrento – uma ave de rapina – aterrorizará os pobres,

Que logo hão de esquecer a lua incrível.

 

Porém, nas celas dos edifícios mais translúcidos,

Onde a vítrea aurora brilha mais que os bisturis dos cirurgiões,

Mais pálida que o álcool ou o éter, mais rútila que a Moeda metálica,

As esposas dos homens brancos, como a de Pilatos,

Lamentam-se ante o perigo de cristalização de seus sonhos:

 

“O romper do dia cravou pregos de ferro

Na carne das mãos e dos pés de Jesus:

Quatro flores de sangue fincaram-nO às paredes do Harlem”.

 

Ao longo dos alvos corredores das clínicas e dos hospitais,

Pilatos evapora-se com um grito:

Deceparam duzentos Judas,

Pendurados pelo pescoço no museu e nas casas de ópera.

 

Por entre as gaiolas dos aviários sem chave,

As cordas e os arames, as armações de pipas despedaçadas,

Crucificam-se, sob a aterrorizante luz,

As roupas esfarrapadas das criancinhas.

 

Em: “Um Homem no Mar Dividido” (1946)

 

Nota:

 

(*). Aubade é uma palavra francesa que significa “na alvorada do século”. Em inglês, aubade pode ter dois significados: (i) uma canção ou poema que saúda o amanhecer; ou (ii) um prelúdio ou abertura romântica ou idílica.

 

Referência:

 

MERTON, Thomas. Aubade-Harlem. In: __________. The collected poems of Thomas Merton. 6th print. New York, NY: New Directions, 1980. p. 82-83.

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