Tudo o que perdemos
na vida nos pertence intrinsecamente – diz-nos o poeta: a perda e as coisas
deixadas para trás são-nos bem inestimáveis, pois que não verdadeiramente
desaparecidas, senão indelevelmente gravadas no mais profundo de nosso ser,
como se partes integrantes essenciais da identidade fossem, compondo um mundo vivenciado
de recordações e de experiências.
Pode parecer
paradoxal assumir a perda como propriedade, sendo ela uma acumulação de
elementos marcados pela ausência, uma espécie de carga que se condensa na
memória. Contudo, é possível assumi-la como uma fonte de riqueza interior, um
refúgio onde se pode encontrar conforto e conexão com o passado, ainda que perpassado
por alguma dor.
O rosto do pai, o
primeiro salmo, a irrupção do amor e muito mais, são imagens que permanecem vívidas,
a induzirem um processo de transformação, levando-nos a crescer e a compreender
mais amplamente os fundamentos de todo renovo: a inocência perdida torna-se
sabedoria, a juventude torna-se experiência, o amor torna-se anamnese.
J.A.R. – H.C.
Mario Benedetti
(1920-2009)
Propiedad de lo
perdido
Todo lo que has
perdido,
me dijeron, es tuyo.
José Emilio Pacheco
Es mía la inocencia
ánfora de cristal tan
desvalida
que nada me sugieren
sus añicos
la juventud es mía
y es además atávico
susurro
rescoldo previo al
imposible fuego
el rostro de mi padre
tan mío es que acude
a mis espejos
para comprometerme en
sus dilemas
es mío el primer
salmo
débil embelesado
entre los árboles
zurcido con las
hebras del olvido
mío el brote de amor
que era quimera y fue
descubrimiento
para soltar arrobos
como un lastre
mío el muro de dios
con su agrietada y
hosca piel de piedras
y sus mil garabatos
de recelo
y la mano fraterna
tan mía es que surge
de las ruinas
para estrechar mi
mano y exhumarme
todo lo que he
perdido
es mío
irremediablemente mío
tan lejano de mí que
es desamparo
Contemplação
(Alexey Adonin:
artista israelo-bielorrusso)
Propriedade do
perdido
Tudo o que perdeste,
me disseram, é teu.
José Emílio Pacheco
É minha a inocência
ânfora de cristal não
desvalida
que nada me sugerem
seus pedaços
a juventude é minha
e é ainda atávico
sussurro
rescaldo prévio ao
impossível fogo
o rosto do meu pai
tão meu é que acode a
meus espelhos
para comprometer-me
em seus dilemas
é meu o primeiro
salmo
débil embelezado
entre as árvores
cerzido com as linhas
do esquecimento
meu o broto de amor
que era quimera e foi
descobrimento
para soltar arroubos
como um lastro
meu o muro de deus
com sua gretada e
fosca pele de pedras
e suas mil garatujas
de receio
e a mão fraterna
tão minha é que surge
das ruínas
para estreitar minha
mão e exumar-me
tudo o que perdi
é meu
irremediavelmente meu
tão distante de mim
que é desamparo
Referência:
BENEDETTI, Mario. Propiedad
de lo perdido / Propriedade do perdido. Tradução de Julio Luís Gehlen. In:
__________. Antologia poética. Seleção, tradução e apresentação de Julio
Luís Gehlen. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p.
76; em português: p. 79.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário