Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Mario Benedetti - Propriedade do perdido

Tudo o que perdemos na vida nos pertence intrinsecamente – diz-nos o poeta: a perda e as coisas deixadas para trás são-nos bem inestimáveis, pois que não verdadeiramente desaparecidas, senão indelevelmente gravadas no mais profundo de nosso ser, como se partes integrantes essenciais da identidade fossem, compondo um mundo vivenciado de recordações e de experiências.

 

Pode parecer paradoxal assumir a perda como propriedade, sendo ela uma acumulação de elementos marcados pela ausência, uma espécie de carga que se condensa na memória. Contudo, é possível assumi-la como uma fonte de riqueza interior, um refúgio onde se pode encontrar conforto e conexão com o passado, ainda que perpassado por alguma dor.

 

O rosto do pai, o primeiro salmo, a irrupção do amor e muito mais, são imagens que permanecem vívidas, a induzirem um processo de transformação, levando-nos a crescer e a compreender mais amplamente os fundamentos de todo renovo: a inocência perdida torna-se sabedoria, a juventude torna-se experiência, o amor torna-se anamnese.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Benedetti

(1920-2009)

 

Propiedad de lo perdido

 

Todo lo que has perdido,

me dijeron, es tuyo.

      José Emilio Pacheco

 

Es mía la inocencia

ánfora de cristal tan desvalida

que nada me sugieren sus añicos

 

la juventud es mía

y es además atávico susurro

rescoldo previo al imposible fuego

 

el rostro de mi padre

tan mío es que acude a mis espejos

para comprometerme en sus dilemas

 

es mío el primer salmo

débil embelesado entre los árboles

zurcido con las hebras del olvido

 

mío el brote de amor

que era quimera y fue descubrimiento

para soltar arrobos como un lastre

 

mío el muro de dios

con su agrietada y hosca piel de piedras

y sus mil garabatos de recelo

 

y la mano fraterna

tan mía es que surge de las ruinas

para estrechar mi mano y exhumarme

 

todo lo que he perdido

es mío irremediablemente mío

tan lejano de mí que es desamparo

 

Contemplação

(Alexey Adonin: artista israelo-bielorrusso)

 

Propriedade do perdido

 

Tudo o que perdeste,

me disseram, é teu.

José Emílio Pacheco

 

É minha a inocência

ânfora de cristal não desvalida

que nada me sugerem seus pedaços

 

a juventude é minha

e é ainda atávico sussurro

rescaldo prévio ao impossível fogo

 

o rosto do meu pai

tão meu é que acode a meus espelhos

para comprometer-me em seus dilemas

 

é meu o primeiro salmo

débil embelezado entre as árvores

cerzido com as linhas do esquecimento

 

meu o broto de amor

que era quimera e foi descobrimento

para soltar arroubos como um lastro

 

meu o muro de deus

com sua gretada e fosca pele de pedras

e suas mil garatujas de receio

 

e a mão fraterna

tão minha é que surge das ruínas

para estreitar minha mão e exumar-me

 

tudo o que perdi

é meu irremediavelmente meu

tão distante de mim que é desamparo

 

Referência:

 

BENEDETTI, Mario. Propiedad de lo perdido / Propriedade do perdido. Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia poética. Seleção, tradução e apresentação de Julio Luís Gehlen. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p. 76; em português: p. 79.

Nenhum comentário:

Postar um comentário