Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Anna Akhmátova - Há três épocas para a lembrança

Akhmátova estabelece um diálogo com outro grande poeta russo, Púchkin (1799-1837), reforçando a noção de que o esquecimento, embora muitas vezes temido, é uma parte essencial do ciclo emocional e da experiência humana: nesse contexto, a epígrafe não só introduz o tema do poema, mas também amplia a compreensão do leitor sobre a complexidade do processo de lembrar e de esquecer, retratado de forma tão rica e multifacetada em seus versos.

 

A poetisa não idealiza o passado, descrevendo-o honestamente a partir de suas paletas incontornáveis – a dor, a alegria e a perda –, as quais matizam os três estágios por que passam as memórias, a saber, o primeiro, a demarcar um período em que se sente profundamente a perda e a lembrança dos eventos é tão vívida que quase se consegue tocá-los; o segundo, em que alguns detalhes são apagados e a atmosfera de olvido vai se sedimentando; e o último, no qual nos alienamos completamente do passado, agora não mais suscetível de apreensão sem que aquilo que se evoca não nos pareça estranho, gerando no espírito tanto uma sensação de amargura, quanto de resignação.

 

J.A.R. – H.C.

 

Anna Akhmátova

(1889-1966)

 

Северные Элегии

 

Шестая (1)

 

Последний ключ холодный ключ забвенья. (2)

Он слаще всех жар сердца утолит.

Пушкин

 

Есть три эпохи у воспоминаний.

И первая как бы вчерашний день.

Душа под сводом их благословенным,

И тело в их блаженствует тени.

Еще не замер смех, струятся слезы,

Пятно чернил не стерто со стола

И, как печать на сердце, поцелуй,

Единственный, прощальный, незабвенный...

Но это продолжается недолго...

Уже не свод над головой, а где-то

В глухом предместье дом уединенный,

Где холодно зимой, а летом жарко,

Где есть паук и пыль на всем лежит,

Где истлевают пламенные письма,

Исподтишка меняются портреты,

Куда как на могилу ходят люди,

А возвратившись, моют руки мылом,

И стряхивают беглую слезинку

С усталых век и тяжело вздыхают...

Но тикают часы, весна сменяет

Одна другую, розовеет небо,

Меняются названья городов,

И нет уже свидетелей событий,

И не с кем плакать, не с кем вспоминать.

И медленно от нас уходят тени,

Которых мы уже не призываем,

Возврат которых был бы страшен нам.

И, раз проснувшись, видим, что забыли

Мы даже путь в тот дом уединенный,

И, задыхаясь от стыда и гнева,

Бежим туда, но (как во сне бывает)

Там все другое: люди, вещи, стены,

И нас никто не знает мы чужие.

Мы не туда попали... Боже мой!

И вот когда горчайшее приходит:

Мы сознаем, что не могли б вместить

То прошлое в границы нашей жизни,

И нам оно почти что так же чуждо,

Как нашему соседу по квартире,

Что тех, кто умер, мы бы не узнали,

А те, с кем нам разлуку Бог послал,

Прекрасно обошлись без нас и даже

Всё к лучшему...

 

5 февраля 1945

Фонтанный Дом

 

Mulher pensando

(Asiza Demetrian: artista romeno-canadense)

 

Das “Elegias do Norte”

 

Quarta

 

Há três épocas para a lembrança.

A primeira é como o dia que passou.

A alma, sob sua cúpula, sente-se abençoada

e o corpo em sua sombra se compraz.

O riso ainda não cessou, as lágrimas escorrem,

a mancha de tinta na mesa ainda não se apagou –

e, como um selo no coração, repousa o beijo

de despedida, único, inesquecível...

Mas isso não dura muito...

Já não há mais cúpula no alto; apenas, em algum lugar,

num subúrbio distante, uma casinha solitária

onde, no inverno, faz frio e, no verão, calor,

onde há aranhas e o pó recobre tudo,

onde caem em pedaços as cartas inflamadas

e os retratos vão imperceptivelmente mudando;

ali, os outros vêm como se ao cemitério

e, ao voltar para casa, lavam-se com sabão,

expulsam uma fugidia lágrima

das pálpebras cansadas – e dão um pesado suspiro...

Mas o relógio ainda bate, as primaveras se sucedem

uma depois da outra, o céu rosado fica,

as cidades mudam de nome,

e já não há mais testemunhas do passado,

já não há mais com quem chorar, com quem lembrar.

Devagarzinho, abandonam-nos as sombras,

que já não invocamos mais

pois o seu retorno poderia assustar-nos.

E um dia, ao despertar, descobrimos ter esquecido

o caminho para ir a essa casinha solitária.

Sufocando de raiva e de vergonha,

corremos para lá, mas (como acontece nos sonhos)

tudo está mudado: os homens, as coisas, as paredes,

e ninguém mais nos reconhece – somos estranhos,

nem a nós mesmos encontramos lá... Meu Deus!

E é aí que cresce a amargura:

sabemos que já não há mais lugar

para esse passado nas fronteiras de nossa vida;

que, para nós, ele já é quase tão indiferente

quanto para o nosso vizinho de apartamento;

que os mortos, já nem os teríamos mais reconhecido;

que aqueles de quem Deus nos separou

passaram muitíssimo bem sem nós – e que, até mesmo,

do jeito que está, está tudo bem...

 

5/2/1945

Leningrado

 

Notas:

 

(1). Na obra de referência em russo, mais à frente mencionada, consta esta elegia como sendo a sexta, embora o tradutor brasileiro a numere como se fosse a quarta.

 

(2). Epígrafe com versos de Púchkin (1799-1837): “A última fonte – é a gélida fonte do olvido. / Ela extingue docemente os ardores do coração”.

 

Referências:

 

Em Russo

 

Ахматова, Анна. Северные Элегии – Шестая. In: __________. Сочинения в Двух Томах. Том Первый. Москва, RU: Правда, 1990. с. 264-265. (Библиотека “Огонек”)

 

Em Português

 

AKHMÁTOVA, Anna. Das “Elegias do Norte” – Quarta. Tradução de Lauro Machado Coelho. In: __________. Antologia poética. Seleção, tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. 1. ed., 1. reimp. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 126-128. (L&PM Pocket; vol. 751)

Nenhum comentário:

Postar um comentário