Akhmátova estabelece
um diálogo com outro grande poeta russo, Púchkin (1799-1837), reforçando a
noção de que o esquecimento, embora muitas vezes temido, é uma parte essencial
do ciclo emocional e da experiência humana: nesse contexto, a epígrafe não só
introduz o tema do poema, mas também amplia a compreensão do leitor sobre a
complexidade do processo de lembrar e de esquecer, retratado de forma tão rica
e multifacetada em seus versos.
A poetisa não idealiza
o passado, descrevendo-o honestamente a partir de suas paletas incontornáveis –
a dor, a alegria e a perda –, as quais matizam os três estágios por que passam
as memórias, a saber, o primeiro, a demarcar um período em que se sente
profundamente a perda e a lembrança dos eventos é tão vívida que quase se
consegue tocá-los; o segundo, em que alguns detalhes são apagados e a atmosfera
de olvido vai se sedimentando; e o último, no qual nos alienamos completamente
do passado, agora não mais suscetível de apreensão sem que aquilo que se evoca
não nos pareça estranho, gerando no espírito tanto uma sensação de amargura, quanto
de resignação.
J.A.R. – H.C.
Anna Akhmátova
(1889-1966)
Северные Элегии
Шестая (1)
Последний ключ – холодный ключ забвенья. (2)
Он слаще всех жар сердца утолит.
Пушкин
Есть три эпохи у воспоминаний.
И первая – как бы вчерашний день.
Душа под сводом их благословенным,
И тело в их блаженствует тени.
Еще не замер смех, струятся слезы,
Пятно чернил не стерто со стола –
И, как печать на сердце, поцелуй,
Единственный, прощальный, незабвенный...
Но это продолжается недолго...
Уже не свод над головой, а где-то
В глухом предместье дом уединенный,
Где холодно зимой, а летом жарко,
Где есть паук и пыль на всем лежит,
Где истлевают пламенные письма,
Исподтишка меняются портреты,
Куда как на могилу ходят люди,
А возвратившись, моют руки мылом,
И стряхивают беглую слезинку
С усталых век – и тяжело вздыхают...
Но тикают часы, весна сменяет
Одна другую, розовеет небо,
Меняются названья городов,
И нет уже свидетелей событий,
И не с кем плакать, не с кем вспоминать.
И медленно от нас уходят тени,
Которых мы уже не призываем,
Возврат которых был бы страшен нам.
И, раз проснувшись, видим, что забыли
Мы даже путь в тот дом уединенный,
И, задыхаясь от стыда и гнева,
Бежим туда, но (как во сне бывает)
Там все другое: люди, вещи, стены,
И нас никто не знает – мы чужие.
Мы не туда попали... Боже мой!
И вот когда горчайшее приходит:
Мы сознаем, что не могли б вместить
То прошлое в границы нашей жизни,
И нам оно почти что так же чуждо,
Как нашему соседу по квартире,
Что тех, кто умер, мы бы не узнали,
А те, с кем нам разлуку Бог послал,
Прекрасно обошлись без нас – и даже
Всё к лучшему...
5 февраля 1945
Фонтанный Дом
Mulher pensando
(Asiza Demetrian:
artista romeno-canadense)
Das “Elegias do
Norte”
Quarta
Há três épocas para a
lembrança.
A primeira é como o
dia que passou.
A alma, sob sua
cúpula, sente-se abençoada
e o corpo em sua
sombra se compraz.
O riso ainda não
cessou, as lágrimas escorrem,
a mancha de tinta na
mesa ainda não se apagou –
e, como um selo no
coração, repousa o beijo
de despedida, único,
inesquecível...
Mas isso não dura
muito...
Já não há mais cúpula
no alto; apenas, em algum lugar,
num subúrbio
distante, uma casinha solitária
onde, no inverno, faz
frio e, no verão, calor,
onde há aranhas e o
pó recobre tudo,
onde caem em pedaços
as cartas inflamadas
e os retratos vão
imperceptivelmente mudando;
ali, os outros vêm
como se ao cemitério
e, ao voltar para
casa, lavam-se com sabão,
expulsam uma fugidia
lágrima
das pálpebras
cansadas – e dão um pesado suspiro...
Mas o relógio ainda
bate, as primaveras se sucedem
uma depois da outra,
o céu rosado fica,
as cidades mudam de
nome,
e já não há mais
testemunhas do passado,
já não há mais com
quem chorar, com quem lembrar.
Devagarzinho,
abandonam-nos as sombras,
que já não invocamos
mais
pois o seu retorno
poderia assustar-nos.
E um dia, ao
despertar, descobrimos ter esquecido
o caminho para ir a
essa casinha solitária.
Sufocando de raiva e
de vergonha,
corremos para lá, mas
(como acontece nos sonhos)
tudo está mudado: os
homens, as coisas, as paredes,
e ninguém mais nos
reconhece – somos estranhos,
nem a nós mesmos
encontramos lá... Meu Deus!
E é aí que cresce a
amargura:
sabemos que já não há
mais lugar
para esse passado nas
fronteiras de nossa vida;
que, para nós, ele já
é quase tão indiferente
quanto para o nosso
vizinho de apartamento;
que os mortos, já nem
os teríamos mais reconhecido;
que aqueles de quem
Deus nos separou
passaram muitíssimo
bem sem nós – e que, até mesmo,
do jeito que está,
está tudo bem...
5/2/1945
Leningrado
Notas:
(1). Na obra de
referência em russo, mais à frente mencionada, consta esta elegia como sendo a sexta,
embora o tradutor brasileiro a numere como se fosse a quarta.
(2). Epígrafe com
versos de Púchkin (1799-1837): “A última fonte – é a gélida fonte do olvido. / Ela
extingue docemente os ardores do coração”.
Referências:
Em Russo
Ахматова, Анна. Северные Элегии – Шестая. In: __________. Сочинения в Двух Томах. Том Первый. Москва, RU: Правда, 1990. с. 264-265. (Библиотека “Огонек”)
Em Português
AKHMÁTOVA, Anna. Das
“Elegias do Norte” – Quarta. Tradução de Lauro Machado Coelho. In: __________. Antologia
poética. Seleção, tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado
Coelho. 1. ed., 1. reimp. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 126-128.
(L&PM Pocket; vol. 751)
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