Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Paul Verlaine - Cavaleiro de máscaras

Da recolha poética intitulada por Verlaine como “Sabedoria” (“Sagesse”), de 1880 – toda ela escrita na Bélgica –, este poema compendia uma visão quase religiosa da tribulação como caminho de regeneração e de iluminação interior, ao descrever o encontro do sujeito lírico com a Desgraça, um cavaleiro mascarado que o fere com sua lança, abatendo o seu “velho coração”, fazendo surgir um novo no lugar – “puro e orgulhoso” –, ao toque gelado do seu dedo de ferro.

 

Com efeito, o poema alegoriza a noção de que o sofrimento e o infortúnio, embora dolorosos, são capazes de trazer renovação espiritual e força àqueles que os assimilam com coragem: a ferida de que se trata, longe de ser lesão física tão apenas, representa uma crise existencial, um momento de falência que coloca em xeque a identidade e os valores do falante, convertendo-se em catalisador para a sua mudança e crescimento.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paul Verlaine

(1844-1896)

 

Bon chevalier

 

Bon chevalier masqué qui chevauche en silence,

Le Malheur a percé mon vieux cœur de sa lance.

 

Le sang de mon vieux cœur n’a fait qu’un jet vermeil

Puis s’est évaporé sur les fleurs, au soleil.

 

L’ombre éteignit mes yeux, un cri vint à ma bouche

Et mon vieux cœur est mort dans un frisson farouche.

 

Alors le chevalier Malheur s’est rapproché.

Il a mis pied à terre et sa main m’a touché.

 

Son doigt ganté de fer entra dans ma blessure

Tandis qu’il attestait sa loi d’une voix dure.

 

Et voici qu’au contact glacé du doigt de fer

Un cœur me renaissait, tout un cœur pur et fier.

 

Et voici que, fervent d’une candeur divine,

Tout un cœur jeune et bon battit dans ma poitrine.

 

Or, je restais tremblant, ivre, incrédule un peu.

Comme un homme qui voit des visions de Dieu.

 

Mais le bon chevalier, remonté sur sa bête,

En s’éloignant me fit un signe de la tète

 

Et me cria (j’entends encor cette voix):

“Au moins, prudence! Car c’est bon pour une fois.”

 

Um cavaleiro na encruzilhada

(Viktor Vasnetsov: artista russo)

 

Cavaleiro de máscaras

 

Cavaleiro de máscaras e que em silêncio avança,

A Desgraça varou-me o peito com a lança.

 

Num jacto de rubor esguichou o meu sangue

E evaporou-se ao sol no canteiro mais langue.

 

Sombra cegou-me o olhar, grito velo-me à boca.

Morreu meu coração de um tremor que treslouca.

 

A Desgraça a cavalo então se aproximou,

Resvalou para o chão, com a mão me tocou.

 

O seu dedo, enluvado, entrou em minha chaga,

Enquanto a sua lei dava a voz mais pressaga.

 

E no dedo de ferro ao gélido contato

Um coração me renascia fero e inato.

 

E eis que fervente do candor mais perfeito,

Jovem, meu coração batia no meu peito.

 

E eu fiquei a hesitar, nestes temores meus,

Como um homem que vê vagas visões de Deus.

 

Mas o bom cavaleiro já no seu animal

Afastando-se fez com a fronte um sinal

 

E gritou-me (esta voz como tem insistência!)

“Faze-o, mas só uma vez. Pelo menos prudência!”

 

Referência:

 

Em Francês

 

VERLAINE, Paul. Bon chevalier. In: __________. Sagesse. Cinquième édition revue et corrigée. Paris, FR: Librairie Léon Vanier Éditeur, 1899. p. 3-4.

 

Em Português

 

VERLAINE, Paul. Cavaleiro de máscaras. Tradução de Jamil Almansur Haddad. In: __________. Passeio sentimental: poemas. Seleção, tradução, prefácio e notas de Jamil Almansur Haddad. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1989. p. 115-116.

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