Da recolha poética intitulada por Verlaine como “Sabedoria” (“Sagesse”), de 1880 – toda ela escrita
na Bélgica –, este poema compendia uma visão quase religiosa da tribulação como
caminho de regeneração e de iluminação interior, ao descrever o encontro do
sujeito lírico com a Desgraça, um cavaleiro mascarado que o fere com sua lança,
abatendo o seu “velho coração”, fazendo surgir um novo no lugar – “puro e
orgulhoso” –, ao toque gelado do seu dedo de ferro.
Com efeito, o poema
alegoriza a noção de que o sofrimento e o infortúnio, embora dolorosos, são capazes
de trazer renovação espiritual e força àqueles que os assimilam com coragem: a
ferida de que se trata, longe de ser lesão física tão apenas, representa uma crise
existencial, um momento de falência que coloca em xeque a identidade e os valores
do falante, convertendo-se em catalisador para a sua mudança e crescimento.
J.A.R. – H.C.
Paul Verlaine
(1844-1896)
Bon chevalier
Bon chevalier masqué
qui chevauche en silence,
Le Malheur a percé
mon vieux cœur de sa lance.
Le sang de mon vieux
cœur n’a fait qu’un jet vermeil
Puis s’est évaporé
sur les fleurs, au soleil.
L’ombre éteignit mes
yeux, un cri vint à ma bouche
Et mon vieux cœur est
mort dans un frisson farouche.
Alors le chevalier
Malheur s’est rapproché.
Il a mis pied à terre
et sa main m’a touché.
Son doigt ganté de
fer entra dans ma blessure
Tandis qu’il
attestait sa loi d’une voix dure.
Et voici qu’au
contact glacé du doigt de fer
Un cœur me
renaissait, tout un cœur pur et fier.
Et voici que, fervent
d’une candeur divine,
Tout un cœur jeune et
bon battit dans ma poitrine.
Or, je restais
tremblant, ivre, incrédule un peu.
Comme un homme qui
voit des visions de Dieu.
Mais le bon
chevalier, remonté sur sa bête,
En s’éloignant me fit
un signe de la tète
Et me cria (j’entends
encor cette voix):
“Au moins, prudence!
Car c’est bon pour une fois.”
Um cavaleiro na
encruzilhada
(Viktor Vasnetsov:
artista russo)
Cavaleiro de máscaras
Cavaleiro de máscaras
e que em silêncio avança,
A Desgraça varou-me o
peito com a lança.
Num jacto de rubor
esguichou o meu sangue
E evaporou-se ao sol
no canteiro mais langue.
Sombra cegou-me o
olhar, grito velo-me à boca.
Morreu meu coração de
um tremor que treslouca.
A Desgraça a cavalo
então se aproximou,
Resvalou para o chão,
com a mão me tocou.
O seu dedo, enluvado,
entrou em minha chaga,
Enquanto a sua lei
dava a voz mais pressaga.
E no dedo de ferro ao
gélido contato
Um coração me
renascia fero e inato.
E eis que fervente do
candor mais perfeito,
Jovem, meu coração
batia no meu peito.
E eu fiquei a
hesitar, nestes temores meus,
Como um homem que vê
vagas visões de Deus.
Mas o bom cavaleiro
já no seu animal
Afastando-se fez com
a fronte um sinal
E gritou-me (esta voz
como tem insistência!)
“Faze-o, mas só uma
vez. Pelo menos prudência!”
Referência:
Em Francês
VERLAINE, Paul. Bon
chevalier. In: __________. Sagesse. Cinquième édition revue et corrigée.
Paris, FR: Librairie Léon Vanier Éditeur, 1899. p. 3-4.
Em Português
VERLAINE, Paul.
Cavaleiro de máscaras. Tradução de Jamil Almansur Haddad. In: __________. Passeio
sentimental: poemas. Seleção, tradução, prefácio e notas de Jamil Almansur
Haddad. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1989. p. 115-116.
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