Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de agosto de 2025

Li-Young Lee - O Presente

Nestes versos, Lee nos oferece um excurso íntimo pelo paço da transmissão de valores e tradições familiares, mediante um simples ato quotidiano: o falante nos conta como o seu pai, ao retirar uma estilha de ferro da palma de sua mão, proporcionando-lhe alívio físico à dor, ensinou-lhe ao mesmo tempo uma oportuna lição de força, resiliência e confiança.

 

Esse simples ato de ternura e disciplina, aos olhos do poeta, tornou-se um símbolo de cuidado e sabedoria, digo melhor, uma espécie de presente que lhe permite acalmar quaisquer medos que possam aflorar nos relacionamentos agora vivenciados, como o que mantém com a sua esposa, com quem, aliás, repete o gesto de seu pai, retirando-lhe cuidadosamente uma estilha do polegar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Li-Young Lee

(n. 1957)

 

The Gift

 

To pull the metal splinter from my palm

my father recited a story in a low voice.

I watched his lovely face and not the blade.

Before the story ended, he’d removed

the iron sliver I thought I’d die from.

 

I can’t remember the tale,

but hear his voice still, a well

of dark water, a prayer.

And I recall his hands,

two measures of tenderness

he laid against my face,

the flames of discipline

he raised above my head.

 

Had you entered that afternoon

you would have thought you saw a man

planting something in a boy’s palm,

a silver tear, a tiny flame.

Had you followed that boy

you would have arrived here,

where I bend over my wife’s right hand.

 

Look how I shave her thumbnail down

so carefully she feels no pain.

Watch as I lift the splinter out.

I was seven when my father

took my hand like this,

and I did not hold that shard

between my fingers and think,

Metal that will bury me,

christen it Little Assassin,

Ore Going Deep for My Heart.

And I did not lift up my wound and cry,

Death visited here!

I did what a child does

when he’s given something to keep.

I kissed my father.

 

Pai e filho

(Kelly Barnes: artista inglesa)

 

O Presente

 

Para tirar a lasca de metal da palma da minha mão

meu pai recitou uma história em voz baixa.

Eu olhava para o seu belo rosto e não para a lâmina.

Antes de a história terminar, ele me havia retirado

a estilha de ferro que imaginei letal.

 

Não consigo me lembrar da história,

mas ainda escuto a sua voz, um poço

de água escura, uma oração.

E recordo as suas mãos,

duas medidas de ternura

que ele pousou sobre a minha face,

as chamas da disciplina

que fez erguer sobre minha cabeça.

 

Se houvesses presenciado a cena naquela tarde

acreditarias ter visto um homem

plantando algo na palma da mão de um menino,

uma lágrima prateada, uma minúscula chama.

E se houvesses seguido aquele menino,

terias chegado aqui,

onde me inclino sobre a mão direita da minha mulher.

 

Repara como lhe desbasto a unha do polegar

com tanto cuidado para que não sinta dor.

Observa como lhe retiro a lasca.

Contava sete anos quando o meu pai

pegou a minha mão deste mesmo modo,

sem que eu pressionasse aquele fragmento

entre os meus dedos, pondo-me a pensar –

Metal que me vai inumar –

batizando-o de Pequeno Assassino,

Minério a Penetrar Fundo em Meu Coração.

Tampouco dei ênfase ao meu ferimento, gritando:

A Morte me visitou!

Fiz o que faz uma criança

quando lhe confiam algo para guardar.

Beijei meu pai.

 

Referência:

 

LEE, Li-Young. The gift. In: DOVE, Rita (Ed.). The penguin anthology of twentieth century american poetry. New York, NY: Penguin Books, 2013. p. 542-543.

sábado, 30 de agosto de 2025

Lawrence Ferlinghetti - “A verdade não é um segredo de poucos”

Ferlinghetti critica de forma irônica, mas incisiva, a pretensão de certas elites culturais e intelectuais em tentar monopolizar o que se toma por verdade, contrapondo a ideia de que a autêntica verdade – e, por extensão, as experiências de ordem espiritual –, devem estar enraizadas naquilo que se viveu, de fato, como constituinte tangível da realidade humana, sendo, por conseguinte, de acesso franqueado a todos.

 

Afirma o poeta que a verdade não é propriedade exclusiva de ninguém e, com isso, vulnerabiliza a truanice daqueles “experts” que se dizem os seus presunçosos detentores, a postura dogmática que assumem quanto o tema são os legados culturais, como se guardiões intocáveis fossem dessa emblemática cidadela chamada “civilização”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lawrence Ferlinghetti

(1919-2021)

 

“Truth is not the secret of a few”

 

6

 

“Truth is not the secret of a few”

yet

you would maybe think so

the way some

librarians

and cultural ambassadors and

especially museum directors

act

 

you’d think they had a corner

on it

the way they

walk around shaking

their high heads and

looking as if they never

went to the bath

room or anything

 

But I wouldn’t blame them

if I were you

They say the Spiritual is best conceived

in abstract terms

and then too

walking around in museums always makes me

want to

‘sit down’

I always feel so

constipated

in those

high altitudes

 

In: “Pictures of the Gone World” (1955)

 

À procura da verdade

(Justin Patton: artista norte-americano)

 

“A verdade não é um segredo de poucos”

 

6

 

“A verdade não é um segredo de poucos”

porém

você pensaria que é

pela maneira como

os bibliotecários

e os adidos culturais e

especialmente os diretores de museu

agem

 

até parece que eles detêm o monopólio

da verdade

pelo ar

pomposo como avançam

de nariz empinado

aparentando que jamais

vão ao banheiro

ou coisa parecida

 

Mas se eu fosse você

não os condenaria

Eles asseguram que os Assuntos Espirituais

são melhor formulados em termos abstratos

e além do mais

perambular pelos museus sempre me deu

uma vontade louca de

“arriar as calças”

Sempre me sinto tão

constipado

nestas

altitudes elevadas

 

Em: “Retratos do Mundo Que Se Foi” (1955)

 

Referência:

 

FERLINGHETTI, Lawrence. “Truth is not the secret of a few”: 6 / “A verdade não é um segredo de poucos”: 6. Tradução de Eduardo Bueno. In: __________. Um parque de diversões da cabeça. Traduções de Eduardo Bueno e Leonardo Fróes. Edição bilíngue. 2. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2007. Em inglês: p. 170; em português: p. 171. (‘L&PM Pocket’; vol. 661)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Bernardo Vilhena - revanche

Neste poema sombrio e desiludido – musicalizado pelo roqueiro Lobão lá pelos anos 80 do século passado –, o poeta e letrista carioca censura as constantes – e fracassadas – tentativas de se refazer a sociedade pela via de “novos saltos”, comparando-as a ciclos reiterados de opressão e de aprisionamento, com o que, meio resignado, dá-nos a entender que é inútil continuar tentando mudar um sistema inerentemente defeituoso, perpetuador de desigualdades e de alienação.

 

Por trás dessas tentativas falhas de mudança, há a ilusão do progresso e da liberdade, que os grandes centros urbanos teimam em negar com as suas estruturas antigas de dominação, agora convertidas em outros tantos sustentáculos: a favela no lugar da senzala, a sala de estar na posição da sala de estar, onde todos estão confinados entre as grades da tecnologia e do consumo, solitários e entregues ao vício do café, do cigarro e do álcool.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bernardo Vilhena

(n. 1949)

 

revanche

 

eu sei que já faz muito tempo

que a gente volta aos princípios

tentando acertar o passo

usando mil artifícios

mas sempre alguém tenta um salto

e a gente é que paga por isso

 

fugimos pras grandes cidades

bichos do mato em busca do mito

de uma nova sociedade

escravos de um novo rito

mas se tudo deu errado

quem é que vai pagar por isso?

 

a favela é a nova senzala

correntes da velha tribo

e a sala é a nova cela

prisioneiros nas grades do vídeo

e se o sol ainda nasce quadrado

quem é que vai pagar por isso?

 

o café, um cigarro, um trago,

tudo isso não é vício

são companheiros da solidão

mas isso só foi no início

hoje em dia somos todos escravos

e quem é que vai pagar por isso?

 

eu não quero mais nenhuma chance

eu não quero mais revanche

 

Desforra

(J.V.: artista eslovaco)

 

Referência:

 

VILHENA, Bernardo. revanche. In: COHN, Sergio (Selección y Prólogo). Once poetas brasileiros. Edición bilingüe. Traducción de John Galán Casanova. 1. ed. Bogotá, BO: Instituto Distrital de las Artes – IDARTES; 2013. p. 60 e 62. (‘Libro al viento universal’; n. 91)

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Zbigniew Herbert - Sobre a tradução de poemas

O poeta polonês sintetiza na metáfora de uma abelha desajeitada, tentando alcançar o centro de uma flor, os desafios inerentes ao trabalho árduo do tradutor de poesia: por mais que tente, sempre haverá nuances, “aromas e sabores” perdidos na tradução, elementos consolidados nas raízes linguísticas e culturais do idioma em que originalmente escrito o poema, dificilmente transladáveis a um outro vernáculo.

 

Não importa o quanto o tradutor tente alcançar o pistilo amarelo da flor, para chegar ao almejado néctar, sempre haverá um limite para a profundidade que ele pode atingir. Aqueles que são céticos sobre o resultado da tradução, só precisam notar os vestígios do “pólen em seu nariz”, para deduzir que, de fato, o tradutor não chegou a captar toda a essência de que integrada a flor do poema.

 

J.A.R. – H.C.

 

Zbigniew Herbert

(1924-1998)

 

O tłumaczeniu wierszy

 

Jak trzmiel niezgrabny

siadł na kwiecie

aż zgięła się łodyga wiotka

przeciska się przez rzędy płatków

podobnych słownikowym kartkom

do środka dąży

gdzie aromat i słodycz jest

i choć ma katar

i brak mu smaku

jednak dąży

aż bije głową

w żółty słupek

 

i tu już koniec

trudno wniknąć

przez kielich kwiatów

do korzeni

więc trzmiel wychodzi

bardzo dumny

i głośno brzęczy:

byłem w środku

 

tym zaś

co mu nie całkiem wierzą

nos pokazuje

z żółtym pyłem

 

Abelha numa flor

(Anna Brigitta Kovacs: artista húngara)

 

Sobre a tradução de poemas

 

Como uma desairosa abelha,

pousa numa flor

fazendo dobrar a flexível haste.

Esgueira-se por entre fileiras de pétalas,

como as páginas de um dicionário.

Empenha-se em atingir o centro,

onde estão o aroma e a doçura.

Embora esteja com rinite

e tenha perdido o paladar,

ainda assim esforça-se bastante,

até tocar com a cabeça

num pistilo amarelo.

 

E aqui finda a ação.

Difícil é penetrar

pelo cálice das flores

em direção às raízes.

Então a abelha retira-se

muito orgulhosa,

zumbindo ruidosamente:

eu era quem estava lá dentro.

 

E, àqueles

que nela não acreditam,

mostra o nariz

amarelado pelo pólen.

 

Referência:

 

HERBERT, Zbigniew. O tłumaczeniu wierszy. In: __________. Wiersze zebrane. Opracowanie edytorskie Ryszard Krynicki. Warszawa, PL: Czytelnik, 1982. s. 80.