Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Ruy Belo - O maná do deserto

O falante nos transporta a um cenário desértico onde acontece um evento extraordinário: a chegada de inumeráveis aves a encobrirem o céu como uma grande mantilha de sombra, evocando a conhecida passagem bíblica do Êxodo, quando Deus teria providenciado a aparição de codornizes e uma profusão de maná, como alimentos para o povo hebreu em terras áridas.

 

Belo sugere uma experiência quase mística, como se fora um retiro espiritual, na qual os problemas cotidianos se dissolvem – ou têm uma pausa providencial –, dada a ocorrência do precitado fenômeno natural da sombra projetada, ao qual são atribuídas diversas interpretações: um leitor das Escrituras julga-o segundo a aludida narrativa das codornizes; um cinéfilo menciona os pássaros de Hitchcock e outro homem afirma que os reconhecerá no freixial – visões divergentes, como se vê –, embora todos concordem que as aves são algo misterioso e desconhecido naquelas paragens.

 

O poema, a par de revelar diferentes perspectivas culturais e históricas, também apresenta uma breve nota alusiva à missão da arte literária, considerando que se trata do veículo primaz da palavra, cujos sentidos, nada obstante, muitas vezes se reputam antinômicos, engendrando contendas.

 

Em suma: os mistérios e, por extensão, o inexplicável são o rio por onde fluem as contingências humanas, as concepções de ordem transcendental e, em boa medida, o universo da arte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ruy Belo

(1933-1978)

 

O maná do deserto

 

Aves tão numerosas como as areias do mar

vieram até nós sobre as dunas a voar

traziam pendurado o grande véu da sombra

que cobriria os nossos ínfimos cuidados

e aboliria até os reais problemas quotidianos

que ainda não há muito a grande arte desconhecia

Foi há tantos anos como as areias do mar

foi no tempo dos nossos pais talvez mesmo no dos avós

O sol escureceu e não se ouvia a voz

de nenhum de nós mais de um metro em redor

Invadia-nos um íntimo torpor

que ao contrário da voz a todos se comunicava

E cada um em volta a medo perguntava:

que aves serão estas que decepam quase as árvores

e nós vemos passar e ficar só nos versos dos poetas?

Um leitor da bíblia falou de codornizes

um cinéfilo dos pássaros de hitchcock

um outro garantiu que havia de saber no freixial

Todos tinham razão porque foi há muitos anos

Lembro-me agora que foi no tempo dos hebreus

e ainda era vivo não apenas deus

como também o homem que escapou de tanta guerra

para morrer às mãos dos literatos

Aves tão numerosas como as areias do mar

vieram até nós sobre as dunas a voar

E à beira-mar à sombra dos pinheiros longe ou perto

todos nós comemos do maná do deserto

 

Em: “Homem de Palavra(s)” (1969)

 

A recolha do maná no deserto

(Giovanni F. Romanelli: pintor italiano)

 

Referência:

 

BELO, Ruy. O maná do deserto. In: __________. Todos os poemas. Vol. 1, 2. ed. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 2004. p. 258.

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