O falante nos
transporta a um cenário desértico onde acontece um evento extraordinário: a
chegada de inumeráveis aves a encobrirem o céu como uma grande mantilha de
sombra, evocando a conhecida passagem bíblica do Êxodo, quando Deus teria
providenciado a aparição de codornizes e uma profusão de maná, como alimentos para
o povo hebreu em terras áridas.
Belo sugere uma
experiência quase mística, como se fora um retiro espiritual, na qual os
problemas cotidianos se dissolvem – ou têm uma pausa providencial –, dada a
ocorrência do precitado fenômeno natural da sombra projetada, ao qual são
atribuídas diversas interpretações: um leitor das Escrituras julga-o segundo a
aludida narrativa das codornizes; um cinéfilo menciona os pássaros de Hitchcock
e outro homem afirma que os reconhecerá no freixial – visões divergentes, como
se vê –, embora todos concordem que as aves são algo misterioso e desconhecido
naquelas paragens.
O poema, a par de
revelar diferentes perspectivas culturais e históricas, também apresenta uma
breve nota alusiva à missão da arte literária, considerando que se trata do
veículo primaz da palavra, cujos sentidos, nada obstante, muitas vezes se
reputam antinômicos, engendrando contendas.
Em suma: os mistérios
e, por extensão, o inexplicável são o rio por onde fluem as contingências
humanas, as concepções de ordem transcendental e, em boa medida, o universo da
arte.
J.A.R. – H.C.
Ruy Belo
(1933-1978)
O maná do deserto
Aves tão numerosas
como as areias do mar
vieram até nós sobre
as dunas a voar
traziam pendurado o
grande véu da sombra
que cobriria os
nossos ínfimos cuidados
e aboliria até os
reais problemas quotidianos
que ainda não há
muito a grande arte desconhecia
Foi há tantos anos
como as areias do mar
foi no tempo dos
nossos pais talvez mesmo no dos avós
O sol escureceu e não
se ouvia a voz
de nenhum de nós mais
de um metro em redor
Invadia-nos um íntimo
torpor
que ao contrário da
voz a todos se comunicava
E cada um em volta a
medo perguntava:
que aves serão estas
que decepam quase as árvores
e nós vemos passar e
ficar só nos versos dos poetas?
Um leitor da bíblia
falou de codornizes
um cinéfilo dos
pássaros de hitchcock
um outro garantiu que
havia de saber no freixial
Todos tinham razão
porque foi há muitos anos
Lembro-me agora que
foi no tempo dos hebreus
e ainda era vivo não
apenas deus
como também o homem
que escapou de tanta guerra
para morrer às mãos
dos literatos
Aves tão numerosas
como as areias do mar
vieram até nós sobre
as dunas a voar
E à beira-mar à
sombra dos pinheiros longe ou perto
todos nós comemos do
maná do deserto
Em: “Homem de
Palavra(s)” (1969)
A recolha do maná no
deserto
(Giovanni F.
Romanelli: pintor italiano)
Referência:
BELO, Ruy. O maná do
deserto. In: __________. Todos os poemas. Vol. 1, 2. ed. Lisboa, PT:
Assírio & Alvim, 2004. p. 258.
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