Eis um canto
profundamente humano a nos convidar para refletirmos sobre a condição dos
marginalizados, digo melhor, daqueles que laboram em condições de
invisibilidade, numa espécie de sacrifício em condições extremas, bem assim o
papel atribuível à poesia enquanto instrumento de denúncia das correlatas injustiças
e de transformação social.
Há na voz lírica certa
carga de dor e de exasperação diante de um quadro de “angústia do povo”, de
luta neste mundo desigual em que os oprimidos praticamente não vislumbram a luz
da esperança num horizonte mediato ou imediato, mas que se obstinam resilientemente,
por trás de uma aparente fachada de aceitação, em dar conta de seu
descontentamento, de sua inconformidade, de sua “insubmissão” em face de
circunstâncias asfixiantes, muitas vezes pela via de reclamos sutis de formas
indiretas.
J.A.R. – H.C.
Bueno de Rivera
(1911-1982)
Canto da insubmissão
Eu, que sou pedra e
montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e
da memória,
mãos sujas no labor
do subsolo,
apenas vos ofereço o
choro vivo
dos homens
solitários.
Somos os filhos da
noite mineral, os frutos
sem planície e sem
sol, ignorados
trabalhadores das
minas tenebrosas.
Marinheiros do abismo
sem estrela e
âncoras.
Caras de carvão,
flores da treva, lírios
de luto brotando num
jardim de turfas.
Homens duros e
amargos, oriundos
de solidões
calcáreas, escondemos
nosso protesto na
ironia indócil,
não cortante como
lâmina, mas pungente
como anedota de
loucos, confissões
de bêbedo, música de
cego.
É estranho esse modo
de ferir, pedindo
desculpas. Amigos,
perdoai-nos,
amigos, crede em nós,
os homens tristes!
Sob a face solene
há um coração
sangrando
por nós, por vós.
Um grito de mãe na
tempestade, um morto
não identificado, uma
janela
na noite do hospital,
um pé descalço,
a tecelã tossindo
sob a rosa de seda,
ou uma bandeira
no enterro do
operário, todo o drama
nos fere, nos afoga
em fundas cogitações
e paralelos.
A angústia do povo
acende o lume
de nossos poemas
solidários.
No entanto, os amigos
aconselham: “Ó ingênuos,
por que esse agitar
de braços como flâmulas?
Na tarde do bar,
entre os espelhos,
há poetas cantando a
vida amena.
Alegrai também o
vosso canto, erguei louvores
à farândola dos
mitos!”
Impossível, embora
eu saiba que há
magnólias sob a lua,
lotações de sereias,
luminosas
vivendas na praia,
entre piano e beijos,
autos deslizando,
peixes lúcidos
no mar do tráfego,
e pernas oleosas,
mãos em brinde
no espelho do
champanhe, o baile, o sonho.
Impossível, pois sei também
que existem
soluços e revoltas,
lírios no charco,
luta de afogados
contra as marés, o
monopólio e a morte.
E isso me comove.
Mais que o fogo
isso me queima e me
ilumina. Eu sofro
o mundo desigual, a
vida em pânico!
Eu, que sou pedra e
montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e
da memória,
só vos posso ditar
este sombrio
canto, denso e amargo
oceano de enigmas,
doloroso
rio subterrâneo.
Persistência da
memória e do tempo
[a partir de tela surrealista
de Salvador Dalí]
(Robert Lyn Nelson: artista
norte-americano)
Referência:
RIVERA, Bueno. Canto
da insubmissão. In: __________. Melhores poemas: Bueno de Rivera.
Seleção de Affonso Romano de Sant’Anna. São Paulo, SP: Global, 2003. p. 65-67.
(‘Os Melhores Poemas’; n. 46)
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