Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 5 de julho de 2025

Bueno de Rivera - Canto da insubmissão

Eis um canto profundamente humano a nos convidar para refletirmos sobre a condição dos marginalizados, digo melhor, daqueles que laboram em condições de invisibilidade, numa espécie de sacrifício em condições extremas, bem assim o papel atribuível à poesia enquanto instrumento de denúncia das correlatas injustiças e de transformação social.

 

Há na voz lírica certa carga de dor e de exasperação diante de um quadro de “angústia do povo”, de luta neste mundo desigual em que os oprimidos praticamente não vislumbram a luz da esperança num horizonte mediato ou imediato, mas que se obstinam resilientemente, por trás de uma aparente fachada de aceitação, em dar conta de seu descontentamento, de sua inconformidade, de sua “insubmissão” em face de circunstâncias asfixiantes, muitas vezes pela via de reclamos sutis de formas indiretas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bueno de Rivera

(1911-1982)

 

Canto da insubmissão

 

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

mãos sujas no labor do subsolo,

apenas vos ofereço o choro vivo

dos homens solitários.

 

Somos os filhos da noite mineral, os frutos

sem planície e sem sol, ignorados

trabalhadores das minas tenebrosas.

Marinheiros do abismo

sem estrela e âncoras.

Caras de carvão, flores da treva, lírios

de luto brotando num jardim de turfas.

 

Homens duros e amargos, oriundos

de solidões calcáreas, escondemos

nosso protesto na ironia indócil,

não cortante como lâmina, mas pungente

como anedota de loucos, confissões

de bêbedo, música de cego.

 

É estranho esse modo de ferir, pedindo

desculpas. Amigos, perdoai-nos,

amigos, crede em nós, os homens tristes!

Sob a face solene

há um coração sangrando

por nós, por vós.

 

Um grito de mãe na tempestade, um morto

não identificado, uma janela

na noite do hospital, um pé descalço,

a tecelã tossindo

sob a rosa de seda, ou uma bandeira

no enterro do operário, todo o drama

nos fere, nos afoga

em fundas cogitações e paralelos.

A angústia do povo acende o lume

de nossos poemas solidários.

 

No entanto, os amigos aconselham: “Ó ingênuos,

por que esse agitar de braços como flâmulas?

Na tarde do bar, entre os espelhos,

há poetas cantando a vida amena.

Alegrai também o vosso canto, erguei louvores

à farândola dos mitos!”

 

Impossível, embora

eu saiba que há magnólias sob a lua,

lotações de sereias, luminosas

vivendas na praia, entre piano e beijos,

autos deslizando, peixes lúcidos

no mar do tráfego,

e pernas oleosas, mãos em brinde

no espelho do champanhe, o baile, o sonho.

Impossível, pois sei também que existem

soluços e revoltas,

lírios no charco, luta de afogados

contra as marés, o monopólio e a morte.

E isso me comove. Mais que o fogo

isso me queima e me ilumina. Eu sofro

o mundo desigual, a vida em pânico!

 

Eu, que sou pedra e montanha, sangue e oeste,

negro poço do tempo e da memória,

só vos posso ditar este sombrio

canto, denso e amargo

oceano de enigmas, doloroso

rio subterrâneo.

 

Persistência da memória e do tempo

[a partir de tela surrealista de Salvador Dalí]

(Robert Lyn Nelson: artista norte-americano)

 

Referência:

 

RIVERA, Bueno. Canto da insubmissão. In: __________. Melhores poemas: Bueno de Rivera. Seleção de Affonso Romano de Sant’Anna. São Paulo, SP: Global, 2003. p. 65-67. (‘Os Melhores Poemas’; n. 46)

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