Este poema hilário de
Cummings nos apresenta uma cena imaginária do Dia do Juízo Final, quando Deus,
passando em revista os mortos, depara-se com seis migalhas que conformam o que
restou do cérebro de uma menina denominada Effie: cada uma delas toma vida para
responder pela garota, empregando subterfúgios verbais para justificar tudo
aquilo que, sendo potencial ilimitado, deixou de se materializar durante a sua
existência, frequentemente por puro conformismo.
As migalhas dizem
respeito, sequencialmente: (i) a qualquer coisa como “Posso ou tenho sua
permissão para agir de determinada forma?”, o que representaria a falta de
confiança em si mesmo e a tendência em buscar o mérito na aprovação de outrem,
rendendo-se à sua autoridade; (ii) sob ideia similar à anterior, ter-se-ia uma
segunda situação, denotativa de subserviência, a reverberar o tom da delegação
de poder a um terceiro em detrimento da autonomia própria, como em “Poderia
fazer isto?”; (iii) sobrevém então outra evasiva que se prende a lastimar um
desejo não realizado, por inação ou outra razão, espelhando o timbre da locução
“Deveria ter agido de tal modo”; (iv) idem, a dar escusas pela falta de
iniciativa ou de atitude proativa, a exemplo daquilo que se expressa pela sentença
“Agiria de tal maneira se pudesse”; (v) da mesma forma, a refletir padrão
similar de comportamento, quando se interpõe ressalva à maneira de “Faria tal
coisa em tal hipótese”; e, por fim, (vi) a desculpa de se haver submetido a um
rol de obrigações para atender a expectativas não exatamente próprias, senão
dos demais, como em “Devo fazer isto ou aquilo, pois do contrário poderei
decepcioná-los”.
Observa-se, por
conseguinte, que o poeta alude amplamente ao padrão subjuntivo de desculpas que
muitas pessoas costumam empregar para justificar a ausência de uma conduta
autoafirmativa, vezes sem conta procrastinadora, deixando de fazer aquilo que,
de outra maneira, resultaria numa existência mais plena, com relevantes chances
de se legar algo de valioso para as gerações vindouras.
Com tanto potencial
não concretizado, por qual razão Deus haveria de curvar-se a tantas escusas para
oferecer aos mortos de ânimo fraco o beneplácito da ressurreição, acolhendo-os
entre os que, a seu juízo, mostram-se dignos da bem-aventurança?! (rs)
J.A.R. – H.C.
E. E. Cummings
(1894-1962)
Portraits
III
here is little Effie’s head
whose brains are made of
gingerbread
when the judgment day comes
God will find six crumbs
stooping by the coffinlid
waiting for something to rise
as the other somethings did –
you imagine His surprise
bellowing through the general
noise
Where is Effie who was dead?
– to God in a tiny voice,
i am may the first crumb said
whereupon its fellow five
crumbs chuckled as if they were
alive
and number two took up the song,
might i’m called and did no wrong
cried the third crumb,i am should
and this is my little sister
could
with our big brother who is would
don’t punish us for we were good;
and the last crumb with some
shame
whispered unto God,my name
is must and with the others i’ve
been Effie who isn’t alive
just imagine it I say
God amid a monstrous din
watch your step and follow me
stooping by Effie’s little,in
(want a match or can you see?)
which the six subjunctive crumbs
twitch like mutilated thumbs:
picture His peering biggest whey
coloured face on which a frown
puzzles,but I know the way –
(nervously Whose eyes approve
the blessed while His ears are
crammed
with the strenous music of
the innumerable capering damned)
– staring wildly up and down
and here we are now judgment day
cross the threshold have no dread
lift the sheet back in this way.
here is little Effie’s head
whose brains are made of
gingerbread
In: & [And] (1925)
Do berço ao túmulo
(Gergely Bukovinszki:
artista húngaro)
Retratos
III
eis aqui a cabeça da
pequena Effie
cujo cérebro é feito
de pão de mel (*)
quando chegar o dia
do juízo final
Deus há de encontrar
seis migalhas
inclinado sobre à
tampa do caixão
à espera de que algo
se levante
tal como o fizeram as
outras coisas –
vós podeis imaginar a
Sua surpresa
aos brados em meio a
um difuso rumor
Onde se encontra
Effie que estava morta?
– a Deus numa voz
quase imperceptível,
“eu sou posso”
disse a primeira migalha
ao que suas outras
cinco migalhas
parelhas riram-se
como se vivas estivessem
e a de número dois
retomou a canção,
“poderia eu sou” e em mal algum incorri
gritou a terceira
migalha, “eu sou deveria
e esta é minha
pequena irmã pudesse
com nosso irmão mais
velho faria
não nos castigueis
porque fomos bons”;
e a última migalha um
tanto acanhada
sussurrou a Deus,
“meu nome é devo
e junto com as outras
fui Effie que viva
não está”
imaginai, digo eu,
Deus
no meio de uma
algaravia monstruosa
cuidai dos vossos
passos e me sigais
curvai-vos ao lado da
pequena Effie,
(necessitais de um
fósforo ou podeis ver?)
onde as seis migalhas
subjuntivas
se contorcem como
polegares mutilados:
podeis visualizar o
Seu rosto vultuoso e pálido
com o cenho franzido
a indicar
perplexidade, mas Lhe
conheço os modos –
(os Seus olhos,
nervosamente, aprovam
os bem-aventurados,
enquanto Seus ouvidos se saturam
com a música estridente
dos
incontáveis condenados
malabaristas)
– ao deitar um olhar irrequieto
para cima e para baixo
mas eis-nos agora no
dia do juízo final
não temais atravessar
o umbral
levantai o lençol
para trás desta forma
aqui está a cabeça da
pequena Effie
cujo cérebro é feito
de pão de mel
Em: & [E] (1925)
Nota:
(*). A rigor, no
original, pão de gengibre; no Brasil, um tipo semelhante é conhecido como pão
de mel, do tamanho de uma tortinha de café, geralmente coberto com chocolate.
Referência:
CUMMINGS, E. E.
Portraits III. In: __________. Complete poems: 1904-1962. Edited by
George James Firmage – Revised, corrected and expanded edition containing all
the published poetry. New York, NY: Liveright, 1991. p. 192-193.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário