Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 17 de julho de 2025

E. E. Cummings - Retratos III

Este poema hilário de Cummings nos apresenta uma cena imaginária do Dia do Juízo Final, quando Deus, passando em revista os mortos, depara-se com seis migalhas que conformam o que restou do cérebro de uma menina denominada Effie: cada uma delas toma vida para responder pela garota, empregando subterfúgios verbais para justificar tudo aquilo que, sendo potencial ilimitado, deixou de se materializar durante a sua existência, frequentemente por puro conformismo.

 

As migalhas dizem respeito, sequencialmente: (i) a qualquer coisa como “Posso ou tenho sua permissão para agir de determinada forma?”, o que representaria a falta de confiança em si mesmo e a tendência em buscar o mérito na aprovação de outrem, rendendo-se à sua autoridade; (ii) sob ideia similar à anterior, ter-se-ia uma segunda situação, denotativa de subserviência, a reverberar o tom da delegação de poder a um terceiro em detrimento da autonomia própria, como em “Poderia fazer isto?”; (iii) sobrevém então outra evasiva que se prende a lastimar um desejo não realizado, por inação ou outra razão, espelhando o timbre da locução “Deveria ter agido de tal modo”; (iv) idem, a dar escusas pela falta de iniciativa ou de atitude proativa, a exemplo daquilo que se expressa pela sentença “Agiria de tal maneira se pudesse”; (v) da mesma forma, a refletir padrão similar de comportamento, quando se interpõe ressalva à maneira de “Faria tal coisa em tal hipótese”; e, por fim, (vi) a desculpa de se haver submetido a um rol de obrigações para atender a expectativas não exatamente próprias, senão dos demais, como em “Devo fazer isto ou aquilo, pois do contrário poderei decepcioná-los”.

 

Observa-se, por conseguinte, que o poeta alude amplamente ao padrão subjuntivo de desculpas que muitas pessoas costumam empregar para justificar a ausência de uma conduta autoafirmativa, vezes sem conta procrastinadora, deixando de fazer aquilo que, de outra maneira, resultaria numa existência mais plena, com relevantes chances de se legar algo de valioso para as gerações vindouras.

 

Com tanto potencial não concretizado, por qual razão Deus haveria de curvar-se a tantas escusas para oferecer aos mortos de ânimo fraco o beneplácito da ressurreição, acolhendo-os entre os que, a seu juízo, mostram-se dignos da bem-aventurança?! (rs)

 

J.A.R. – H.C.

 

E. E. Cummings

(1894-1962)

 

Portraits

 

III

 

here is little Effie’s head

whose brains are made of gingerbread

when the judgment day comes

God will find six crumbs

 

stooping by the coffinlid

waiting for something to rise

as the other somethings did –

you imagine His surprise

 

bellowing through the general noise

Where is Effie who was dead?

– to God in a tiny voice,

i am may the first crumb said

 

whereupon its fellow five

crumbs chuckled as if they were alive

and number two took up the song,

might i’m called and did no wrong

 

cried the third crumb,i am should

and this is my little sister could

with our big brother who is would

don’t punish us for we were good;

 

and the last crumb with some shame

whispered unto God,my name

is must and with the others i’ve

been Effie who isn’t alive

 

just imagine it I say

God amid a monstrous din

watch your step and follow me

stooping by Effie’s little,in

 

(want a match or can you see?)

which the six subjunctive crumbs

twitch like mutilated thumbs:

picture His peering biggest whey

 

coloured face on which a frown

puzzles,but I know the way –

(nervously Whose eyes approve

the blessed while His ears are crammed

 

with the strenous music of

the innumerable capering damned)

– staring wildly up and down

and here we are now judgment day

 

cross the threshold have no dread

lift the sheet back in this way.

here is little Effie’s head

whose brains are made of gingerbread

 

In: & [And] (1925)

 

Do berço ao túmulo

(Gergely Bukovinszki: artista húngaro)

 

Retratos

 

III

 

eis aqui a cabeça da pequena Effie

cujo cérebro é feito de pão de mel (*)

quando chegar o dia do juízo final

Deus há de encontrar seis migalhas

 

inclinado sobre à tampa do caixão

à espera de que algo se levante

tal como o fizeram as outras coisas –

vós podeis imaginar a Sua surpresa

 

aos brados em meio a um difuso rumor

Onde se encontra Effie que estava morta?

– a Deus numa voz quase imperceptível,

“eu sou posso” disse a primeira migalha

 

ao que suas outras cinco migalhas

parelhas riram-se como se vivas estivessem

e a de número dois retomou a canção,

poderia eu sou” e em mal algum incorri

 

gritou a terceira migalha, “eu sou deveria

e esta é minha pequena irmã pudesse

com nosso irmão mais velho faria

não nos castigueis porque fomos bons”;

 

e a última migalha um tanto acanhada

sussurrou a Deus, “meu nome é devo

e junto com as outras

fui Effie que viva não está”

 

imaginai, digo eu, Deus

no meio de uma algaravia monstruosa

cuidai dos vossos passos e me sigais

curvai-vos ao lado da pequena Effie,

 

(necessitais de um fósforo ou podeis ver?)

onde as seis migalhas subjuntivas

se contorcem como polegares mutilados:

podeis visualizar o Seu rosto vultuoso e pálido

 

com o cenho franzido a indicar

perplexidade, mas Lhe conheço os modos –

(os Seus olhos, nervosamente, aprovam

os bem-aventurados, enquanto Seus ouvidos se saturam

 

com a música estridente dos

incontáveis condenados malabaristas)

– ao deitar um olhar irrequieto para cima e para baixo

mas eis-nos agora no dia do juízo final

 

não temais atravessar o umbral

levantai o lençol para trás desta forma

aqui está a cabeça da pequena Effie

cujo cérebro é feito de pão de mel

 

Em: & [E] (1925)

 

Nota:

 

(*). A rigor, no original, pão de gengibre; no Brasil, um tipo semelhante é conhecido como pão de mel, do tamanho de uma tortinha de café, geralmente coberto com chocolate.

 

Referência:

 

CUMMINGS, E. E. Portraits III. In: __________. Complete poems: 1904-1962. Edited by George James Firmage – Revised, corrected and expanded edition containing all the published poetry. New York, NY: Liveright, 1991. p. 192-193.

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