Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Adolfo Casais Monteiro - Amarga taça

Um certo desencanto e desilusão perante a vida perpassa as linhas deste poema de Monteiro, para quem, aparentemente, a existência humana exibe carência de sentido, imersa que está em certezas e crenças que, aos poucos, desmoronam e perdem o seu valor, transmitindo uma sensação de vazio que ainda mais se amplifica diante da inevitabilidade do sofrimento e da morte.

 

Com efeito, entrecortam-se ideias no discurso do falante a questionarem a futilidade das verdades absolutas, vislumbrando a memória como um espaço ilusório ou infecundo; considerando a indiferença do universo como contraparte a uma esperança que se obstina em manter-se operante, mesmo à vista de desarrazoados padecimentos. Ainda assim, a despeito de todos os infortúnios e prognósticos, “a vida continua”!

 

J.A.R. – H.C.

 

Adolfo Casais Monteiro

(1908-1972)

 

Amarga taça

 

A Carlos Drummond de Andrade

 

Nada é resolução e nada é fim.

 

A vida passa,

e das “verdades definitivas” só fica poeira e cinza,

e, coalhadas na memória estéril de alguém,

certezas apesar de tudo que não querem dizer nada.

Porque a vida continua

e continua a esperança, continua a ilusão

de tudo se continuar e durar sempre.

Dura, na ilusão do nosso segundo de vida.

Dura, na memória irreal das coisas pensadas.

Dura, fora de nós, alheia a nós,

como um rastro de estrela apagada há milénios.

E que nos importa? De que nos vale

essa ilusão em todos e mentira em cada um?

Vale a escravidão? Valem as amarguras

das vidas sempre em vão sacrificadas?

 

Nada vale o sangue e a vida poluídos.

Nada vale a vida roubada de sentido.

Nada vale os sofrimentos sofridos sempre em vão.

 

Vida vã

(Younes Faghihi: artista franco-iraniano)

 

Referência:

 

MONTEIRO, Adolfo Casais. Amarga taça. In: __________. Poesias completas: 1929-1969. Lisboa, PT: Portugália, 1969. p. 253-254.

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