Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 15 de julho de 2025

Carlos Felipe Moisés - Poema de três faces

Estruturada em três partes – nomeadamente, as “três faces” do título, muito a evocar a similar designação de Drummond para o seu “Poema de sete faces” –, esta lucubração de Moisés deslinda distintos aspectos da existência humana e da condição do indivíduo em relação a si mesmo e aos demais, ao tempo que destaca a importância do silêncio e da responsabilidade compartilhada.

 

As percepções do que fomos ou do que não logramos ser não mudam o estado de coisas, pois que a vida, ainda que fugaz, não deixa de fluir de qualquer modo, assentando uma marca indelével na memória. É nessa memória que reside o nosso verdadeiro legado, quando usamos nossos dons e talentos para o bem comum, quando nos dispomos à construção de um mundo interno mais equilibrado – único e soberano –, em conexão com o corpo social do qual fazemos parte por acordo tácito.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Felipe Moisés

(1942-2017)

 

Poema de três faces

 

I

 

O que levas no teu bojo

não é teu.

Tampouco te pertence

a sólida reserva de silêncio

que arduamente conseguiste.

Ganhaste-a enfim

para distribuí-la.

Após entrares no domínio

de teus dons,

urge obsequiá-los

um a um entre os iguais.

É o tácito acordo

que engendraste um dia

com teu povo

e agora se cumpre.

 

II

 

Ser e não ser mais.

Sofrer sem interrupção

e absurdamente crer

que um simples gesto possa

alterar a ordem vá das coisas.

Inútil lamentares

o que foste e o que não foste.

Seremos sempre o que a sós

fizermos de cada, instante

nosso em vão vivido.

Em vão

para a pequena utilidade

dos desígnios vizinhos

ou palpáveis;

único e soberbo

na face interna dos seres

que no ocaso se resolvem.

 

III

 

Tudo é memória

e tudo é sonho.

O nome que balbuciamos

quando a noite

rente aos olhos

passa desfilando,

é silêncio. Densifica

intensifica pacifica

e vai, perplexo,

o homem elaborando

a carga de silêncio

do instante que não fica.

Não fica mas restamos

nós que somos o que fica.

Nem instante nem

os olhos nem a face

que suplica.

Nós a sós,

no ermo da noite,

apaziguando a solidão

que não se explica.

 

Em: “A tarde e o tempo” (1964)

 

Perfil e alma

(Ismael Nery: pintor paraense)

 

Referência:

 

MOISÉS, Carlos Felipe. Poema de três faces. In: __________. Poemas reunidos: 1956-1973. São Paulo, SP: Cultrix, 1974. p. 38-39.

Nenhum comentário:

Postar um comentário