Estruturada em três
partes – nomeadamente, as “três faces” do título, muito a evocar a similar designação
de Drummond para o seu “Poema de sete faces” –, esta lucubração de Moisés deslinda
distintos aspectos da existência humana e da condição do indivíduo em relação a
si mesmo e aos demais, ao tempo que destaca a importância do silêncio e da responsabilidade
compartilhada.
As percepções do
que fomos ou do que não logramos ser não mudam o estado de coisas, pois que a vida,
ainda que fugaz, não deixa de fluir de qualquer modo, assentando uma marca
indelével na memória. É nessa memória que reside o nosso verdadeiro legado,
quando usamos nossos dons e talentos para o bem comum, quando nos dispomos à
construção de um mundo interno mais equilibrado – único e soberano –, em conexão
com o corpo social do qual fazemos parte por acordo tácito.
J.A.R. – H.C.
Carlos Felipe Moisés
(1942-2017)
Poema de três faces
I
O que levas no teu
bojo
não é teu.
Tampouco te pertence
a sólida reserva de
silêncio
que arduamente
conseguiste.
Ganhaste-a enfim
para distribuí-la.
Após entrares no
domínio
de teus dons,
urge obsequiá-los
um a um entre os
iguais.
É o tácito acordo
que engendraste um
dia
com teu povo
e agora se cumpre.
II
Ser e não ser mais.
Sofrer sem interrupção
e absurdamente crer
que um simples gesto
possa
alterar a ordem vá
das coisas.
Inútil lamentares
o que foste e o que
não foste.
Seremos sempre o que
a sós
fizermos de cada,
instante
nosso em vão vivido.
Em vão
para a pequena
utilidade
dos desígnios
vizinhos
ou palpáveis;
único e soberbo
na face interna dos
seres
que no ocaso se
resolvem.
III
Tudo é memória
e tudo é sonho.
O nome que
balbuciamos
quando a noite
rente aos olhos
passa desfilando,
é silêncio. Densifica
intensifica pacifica
e vai, perplexo,
o homem elaborando
a carga de silêncio
do instante que não
fica.
Não fica mas restamos
nós que somos o que
fica.
Nem instante nem
os olhos nem a face
que suplica.
Nós a sós,
no ermo da noite,
apaziguando a solidão
que não se explica.
Em: “A tarde e o
tempo” (1964)
Perfil e alma
(Ismael Nery: pintor
paraense)
Referência:
MOISÉS, Carlos
Felipe. Poema de três faces. In: __________. Poemas reunidos: 1956-1973.
São Paulo, SP: Cultrix, 1974. p. 38-39.
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