Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Vinicius de Moraes - Carta aos “Puros”

Moraes, numa crítica mordaz e sarcástica àqueles que se consideram moralmente superiores, arremete contra a hipocrisia e a falsa pureza dos indivíduos que se creem perfeitos, portadores da verdade, quando, na realidade, são escravos de seus instintos mais obscuros e de sentimentos negativos, como o ressentimento e o ânimo para o conflito.

 

Enquanto seres vazios, hipócritas, cheios de vícios e de preconceitos, tais “puros” são criaturas inautênticas, obcecadas pelas aparências e dominadas pelo desprezo aos outros. E mais do que isso: quase sempre pertencem à classe dominante, amiúde de orientação conservadora, composta de pessoas frias e insensíveis, incapazes de vivenciar emoções genuínas.

 

O poeta sugere, ao fim, que a hipocrisia desses “puros” fingidos não pode ser ocultada para sempre, pois que haverá de chegar o dia em que essa gente será substituída por pessoas mais autênticas, compassivas e justas. Pergunto-me: será?

 

Passados mais de oitenta anos que o infratranscrito poema foi redigido pelo “poetinha”, não se veem sinais de que as pessoas tenham se tornado mais íntegras, sinceras ou mais empáticas: muito pelo contrário. Basta ver o que se passa, v.g., no Congresso Nacional de Pindorama, tomado por extremistas de direita, muito dos quais dizendo-se cristãos, mas que se comprazem em espalhar mentiras por meio de “fake news”, entendendo-as como um direito inaliável de “liberdade de expressão” – quando, em realidade, não passam de transgressões à lei, naquilo que denigrem a vida de pessoas e põem em risco a vida e a integridade física de muitos dos que estão sujeitos aos efeitos nocivos delas derivados.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

 

Carta aos “Puros”

 

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros

E em cujos olhos queima um lento fogo frio

Vós de nervos de nylon e de músculos duros

Capazes de não rir durante anos a fio.

 

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos

Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios

Vós que almejais na carne o estigma dos martírios

E desejais ser fuzilados sem o lenço.

 

Ó vós, homens iluminados a néon

Seres extraordinariamente rarefeitos

Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos

E vos ciliciais à ideia do que é bom.

 

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros

E vos julgais os portadores da verdade

Quando nada mais sois, à luz da realidade,

Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

 

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte

E vos enclausurais no instinto que vos ceva

Vós que vedes na luz o antônimo da treva

E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

 

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito

E erigis a esperança em bandeira aguerrida

Sem saber que a esperança é um simples dom da vida

E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

 

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares

Onde o homem que ama oculta o seu segredo

Vós que viveis a mastigar os maxilares

E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

 

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos

Que tudo equacionais em termos de conflito

E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito

E não sabeis vencer se não houver vencidos.

 

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres

Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos

E maiusculizais os sentimentos nobres

E gostais de dizer que sois homens honestos.

 

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres

Que só articulais para emitir conceitos

E pensais que o credor tem todos os direitos

E o pobre devedor tem todos os deveres.

 

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta

Em nome de vossa vã sabedoria

Vós que tudo comeis mas viveis de dieta

E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

 

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra

Falsos chimangos, calabares, sinecuros

Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...

E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

 

Pessoas ao sol

(Edward Hopper: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

MORAES, Vinicius de. Carta aos “puros”. In: __________. Para viver um grande amor: crônicas e poemas. 1. ed. 13. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2001. p. 59-60.

Nenhum comentário:

Postar um comentário