Moraes, numa crítica
mordaz e sarcástica àqueles que se consideram moralmente superiores, arremete
contra a hipocrisia e a falsa pureza dos indivíduos que se creem perfeitos,
portadores da verdade, quando, na realidade, são escravos de seus instintos
mais obscuros e de sentimentos negativos, como o ressentimento e o ânimo para o
conflito.
Enquanto seres
vazios, hipócritas, cheios de vícios e de preconceitos, tais “puros” são
criaturas inautênticas, obcecadas pelas aparências e dominadas pelo desprezo
aos outros. E mais do que isso: quase sempre pertencem à classe dominante, amiúde
de orientação conservadora, composta de pessoas frias e insensíveis, incapazes
de vivenciar emoções genuínas.
O poeta sugere, ao
fim, que a hipocrisia desses “puros” fingidos não pode ser ocultada para sempre,
pois que haverá de chegar o dia em que essa gente será substituída por pessoas
mais autênticas, compassivas e justas. Pergunto-me: será?
Passados mais de
oitenta anos que o infratranscrito poema foi redigido pelo “poetinha”, não se
veem sinais de que as pessoas tenham se tornado mais íntegras, sinceras ou mais
empáticas: muito pelo contrário. Basta ver o que se passa, v.g., no Congresso
Nacional de Pindorama, tomado por extremistas de direita, muito dos quais
dizendo-se cristãos, mas que se comprazem em espalhar mentiras por meio de “fake
news”, entendendo-as como um direito inaliável de “liberdade de expressão” –
quando, em realidade, não passam de transgressões à lei, naquilo que denigrem a
vida de pessoas e põem em risco a vida e a integridade física de muitos dos que
estão sujeitos aos efeitos nocivos delas derivados.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Carta aos “Puros”
Ó vós, homens sem
sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos
queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon
e de músculos duros
Capazes de não rir
durante anos a fio.
Ó vós, homens sem
sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue
incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na
carne o estigma dos martírios
E desejais ser
fuzilados sem o lenço.
Ó vós, homens
iluminados a néon
Seres
extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais
e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à ideia
do que é bom.
Ó vós, a quem os bons
amam chamar de os Puros
E vos julgais os
portadores da verdade
Quando nada mais
sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos
sentimentos mais escuros.
Ó vós que só viveis
nos vórtices da morte
E vos enclausurais no
instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz
o antônimo da treva
E acreditais que o
amor é o túmulo do forte.
Ó vós que pedis pouco
à vida que dá muito
E erigis a esperança
em bandeira aguerrida
Sem saber que a
esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é
um dom público e gratuito.
Ó vós que vos negais
à escuridão dos bares
Onde o homem que ama
oculta o seu segredo
Vós que viveis a
mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a
noite, e dormis cedo.
Ó vós, os curiais; ó
vós, os ressentidos
Que tudo equacionais
em termos de conflito
E não sabeis pedir
sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer
se não houver vencidos.
Ó vós que vos
comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de
graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os
sentimentos nobres
E gostais de dizer
que sois homens honestos.
Ó vós, falsos Catões,
chichisbéus de mulheres
Que só articulais
para emitir conceitos
E pensais que o
credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem
todos os deveres.
Ó vós que desprezais
a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã
sabedoria
Vós que tudo comeis
mas viveis de dieta
E achais que o bem do
alheio é a melhor iguaria.
Ó vós, homens da
sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos,
calabares, sinecuros
Tende cuidado porque
a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a
vez dos verdadeiros puros.
Pessoas ao sol
(Edward Hopper: pintor
norte-americano)
Referência:
MORAES, Vinicius de.
Carta aos “puros”. In: __________. Para viver um grande amor: crônicas e
poemas. 1. ed. 13. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2001. p. 59-60.
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