Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 6 de junho de 2025

João Cabral de Melo Neto - Os rios de um dia

Abordando a ideia da existência e da mortalidade humana por meio da metáfora de um rio, em seu fluxo constante em direção ao mar, onde, ao desembocar, “suicida-se”, o poeta pernambucano, sempre com aquela sua elocução precisa, por vezes até mesmo áspera, tenciona quiçá ponderar sobre o fato de que a ação, a clareza de propósitos e a aceitação de nossa própria natureza efêmera são essenciais para que tenhamos uma vida plena.

 

Digo isso porque ao aludir, em específico, aos “rios do sertão”, Melo Neto acaba por evocar a urgência e a intensidade do viver frente à possibilidade de uma existência prolongada, porém vazia ou carente de vitalidade: somos, em suma, como os rios, a “professar friamente” o nosso fado de fluir, de nos adaptar ao meio e de nos renovar, para logo desaparecermos.

 

J.A.R. – H.C.

 

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

 

Os rios de um dia

 

Os rios, de tudo o que existe vivo,

vivem a vida mais definida e clara;

para os rios, viver vale se definir

e definir viver com a língua da água.

O rio corre; e assim viver para o rio

vale não só ser corrido pelo tempo:

o rio corre; e depois que com sua água,

viver vale suicidar-se, todo o tempo.

 

2

 

Por isso, que ele define com clareza,

o rio aceita e professa, friamente,

e se procuram lhe atar a hemorragia,

ou a vida suicídio, o rio se defende.

O que um rio do Sertão, rio interino,

prova com sua água, curta nas medidas:

ao se correr torrencial, de uma vez,

sobre leitos de hotel, de um só dia;

ao se correr torrencial, de uma vez,

sem alongar seu morrer, pouco a pouco,

sem alongá-lo, em suicídio permanente

ou no que todos, os rios duradouros;

esses rios do Sertão falam tão claro

que induz ao suicídio a pressa deles:

para fugir na morte da vida em poças

que pega quem devagar por tanta sede.

 

Capibaribe Blues

(Jéssica Martins: artista pernambucana)

 

Referência:

 

MELO NETO, João Cabral. Os rios de um dia. In: FERRAZ, Eucanaã (Organização e Prefácio). Veneno antimonotonia. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2005. p. 23.

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