Abordando a ideia da
existência e da mortalidade humana por meio da metáfora de um rio, em seu fluxo
constante em direção ao mar, onde, ao desembocar, “suicida-se”, o poeta
pernambucano, sempre com aquela sua elocução precisa, por vezes até mesmo
áspera, tenciona quiçá ponderar sobre o fato de que a ação, a clareza de
propósitos e a aceitação de nossa própria natureza efêmera são essenciais para que
tenhamos uma vida plena.
Digo isso porque ao
aludir, em específico, aos “rios do sertão”, Melo Neto acaba por evocar a
urgência e a intensidade do viver frente à possibilidade de uma existência
prolongada, porém vazia ou carente de vitalidade: somos, em suma, como os rios,
a “professar friamente” o nosso fado de fluir, de nos adaptar ao meio e de nos
renovar, para logo desaparecermos.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo
Neto
(1920-1999)
Os rios de um dia
Os rios, de tudo o
que existe vivo,
vivem a vida mais
definida e clara;
para os rios, viver
vale se definir
e definir viver com a
língua da água.
O rio corre; e assim
viver para o rio
vale não só ser
corrido pelo tempo:
o rio corre; e depois
que com sua água,
viver vale
suicidar-se, todo o tempo.
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Por isso, que ele
define com clareza,
o rio aceita e
professa, friamente,
e se procuram lhe
atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o
rio se defende.
O que um rio do
Sertão, rio interino,
prova com sua água,
curta nas medidas:
ao se correr
torrencial, de uma vez,
sobre leitos de
hotel, de um só dia;
ao se correr
torrencial, de uma vez,
sem alongar seu
morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em
suicídio permanente
ou no que todos, os
rios duradouros;
esses rios do Sertão
falam tão claro
que induz ao suicídio
a pressa deles:
para fugir na morte
da vida em poças
que pega quem devagar
por tanta sede.
Capibaribe Blues
(Jéssica Martins:
artista pernambucana)
Referência:
MELO NETO, João
Cabral. Os rios de um dia. In: FERRAZ, Eucanaã (Organização e Prefácio). Veneno
antimonotonia. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2005. p. 23.
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