Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Mário Chamie - Colheita

Lançando mão de recursos anafóricos, Chamie estabelece paralelismos entre a “mão que colhe” e os distintos elementos que são objeto da “colheita” – cereais, frutas, vegetais, minerais e inclusive pessoas –, numa repetição hipnótica a enfatizar a ideia que tenciona transmitir: a ação de colher como uma metáfora da própria vida, naquilo que media a nossa relação de exploração da natureza, até mesmo a responsabilização e as repercussões de nossas ações sobre o meio ambiente.

 

A seu ver, tudo, desde o mais humilde até o mais grandioso, está sujeito ao ciclo da colheita e, em última instância, aos impactos sociais e humanos da atividade laboral, suas rotinas fatigantes, seu descomedido consumo, num desgaste exploratório de recursos capaz de deteriorá-los ou exauri-los, precipitando a tão temida decadência, a heraclitiana transitoriedade das coisas do mundo – a essência mesma de tudo quanto existe.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mário Chamie

(1933-2011)

 

Colheita

 

A mão que colhe

cereal: aveia, arroz, café em casca

onde o pó envolve (correia e capa)

 

encobre

 

ao jeito próprio da mão que colhe

areia e cal: laranja, feijão, o pé em folha

onde o pó empasta (colmeia e toalha)

 

encobre

 

ao fecho próprio da mão que colhe

pantanal: avenca, milho, sapé em tufo

onde o pó estufa (frieira e mofo)

 

encobre

 

ao dedo próprio da mão que colhe

mel e sal: colheita, soja, fava em fuste

onde o pó enruste (coleira e haste)

 

encobre

 

ao trevo próprio da mão que colhe

mineral: turquesa, pedra, pedra em pedra

onde o pó enreda (pedreira e quebra)

 

encobre

 

ao treino próprio da mão que colhe

o pessoal: maneira, gente, povo em fome

onde o pó consome (menino e homem)

 

O medo da mão que colhe

encobre.

 

A Colheita

(Vincent van Gogh: pintor holandês)

 

Referência:

 

CHAMIE, Mário. Colheita. In: __________. Sábado na hora da escuta. São Paulo, SP: Summus, 1978. p. 69.

Nenhum comentário:

Postar um comentário