Lançando mão de
recursos anafóricos, Chamie estabelece paralelismos entre a “mão que colhe” e
os distintos elementos que são objeto da “colheita” – cereais, frutas, vegetais,
minerais e inclusive pessoas –, numa repetição hipnótica a enfatizar a ideia
que tenciona transmitir: a ação de colher como uma metáfora da própria vida, naquilo
que media a nossa relação de exploração da natureza, até mesmo a responsabilização
e as repercussões de nossas ações sobre o meio ambiente.
A seu ver, tudo,
desde o mais humilde até o mais grandioso, está sujeito ao ciclo da colheita e,
em última instância, aos impactos sociais e humanos da atividade laboral, suas rotinas
fatigantes, seu descomedido consumo, num desgaste exploratório de recursos
capaz de deteriorá-los ou exauri-los, precipitando a tão temida decadência, a heraclitiana
transitoriedade das coisas do mundo – a essência mesma de tudo quanto existe.
J.A.R. – H.C.
Mário Chamie
(1933-2011)
Colheita
A mão que colhe
cereal: aveia, arroz,
café em casca
onde o pó envolve
(correia e capa)
encobre
ao jeito próprio da
mão que colhe
areia e cal: laranja,
feijão, o pé em folha
onde o pó empasta
(colmeia e toalha)
encobre
ao fecho próprio da
mão que colhe
pantanal: avenca,
milho, sapé em tufo
onde o pó estufa
(frieira e mofo)
encobre
ao dedo próprio da
mão que colhe
mel e sal: colheita,
soja, fava em fuste
onde o pó enruste
(coleira e haste)
encobre
ao trevo próprio da
mão que colhe
mineral: turquesa,
pedra, pedra em pedra
onde o pó enreda
(pedreira e quebra)
encobre
ao treino próprio da
mão que colhe
o pessoal: maneira, gente,
povo em fome
onde o pó consome
(menino e homem)
O medo da mão que
colhe
encobre.
A Colheita
(Vincent van Gogh:
pintor holandês)
Referência:
CHAMIE, Mário.
Colheita. In: __________. Sábado na hora da escuta. São Paulo, SP:
Summus, 1978. p. 69.
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