Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 3 de junho de 2025

Millôr Fernandes - Saudação aos que vão ficar

Millôr especula, em 1958, sobre o Brasil e o mundo do futuro, ou melhor, na virada do século XX para o XXI, pela via de um elenco de perguntas retóricas a açambarcar temas tão diversos quanto o progresso tecnológico, as relações sociais, a moral, a lei e a ordem. Consigne-se por oportuno que, naquele momento, o mundo, como hoje, passava por grandes transições: a Guerra Fria estava no seu apogeu, a corrida espacial acabara de começar e palpável era a ameaça de uma guerra nuclear.

 

Pouco mais de duas décadas se passaram além do ponto futuro vislumbrado pelo poeta. Por conseguinte, já se pode declinar um olhar do presente para o passado recente, um histórico tangível daquilo em que o Brasil se transformou: um campo minado para ‘fake news’ – sobretudo do espectro político que vai da direita a extrema-direita –, sem qualquer apelo a valores éticos autênticos, senão a uma moral ultraconservadora e retrógrada que se pretende impositiva ao outro âmbito da sociedade que não a recepciona ou convalida, a pretexto, contraditoriamente, do exercício de uma “liberdade de expressão” bem aos parâmetros de uma ordem fascista.

 

E sabem-se lá as externalidades, sobretudo as de natureza negativa, que as denominadas inteligências artificiais poderão engendrar no espaço que ora se denomina de pós-modernidade, agora afeita a um mundo sem escrúpulos no qual domina a pós-verdade, algo como um equivalente a viver sob mentiras ou campanhas difamatórias que incorrem em explícitos delitos cominados legalmente, prejudicando ora a alguns, ora a um grupo social, ora ainda a um amplo contingente de milhões.

 

Para ilustrar determinadas facetas desse universo de significativa imersão num oceano entrópico, transcrevem-se alguns excertos da obra “A vida sempre tem um sentido?”, do logoterapeuta Alberto Nery (v. referência completa ao final desta postagem), nos quais o autor destila uma crítica contundente à hipocrisia, à intolerância e ao desvio dos verdadeiros valores éticos e humanitários, por parte de algumas lideranças religiosas e políticas do país, que adotam discursos de ódio, discriminação e negacionismo, contrariando os preceitos fundamentais do amor ao próximo e do respeito à vida:

 

O discurso institucional de muitos cristãos torna-se progressivamente vazio, conforme suas preocupações passam a ser cada vez mais determinadas por pautas conservadoras de usos e costumes e alinhadas a projetos de domínio político, do que pela essência da mensagem de amor ao próximo ensinada pelo próprio Cristo. Por mais contraditório que possa parecer, vemos uma parcela significativa de Igrejas cristãs defendendo ideologias totalitárias, negacionistas, armamentistas, a favor da pena de morte, homofóbicas e misóginas. Sacerdotes, padres e pastores que se posicionam contrariamente a essas convenções acabam silenciados ou ‘cancelados’”. (NERY, 2023, p. 141)

 

“A xenofobia e o preconceito ainda estão presentes em muitos países desenvolvidos que, sistematicamente, fecham as portas para uma prosperidade, na maior parte das vezes, conquistada a partir da exploração dos próprios países e dos povos aos quais viram agora as costas e fecham suas fronteiras”. (NERY, 2023, p. 165).

 

“Políticos que pregam o ódio e o extermínio de defensores de ideologias contrárias seguem populares, fazendo de sua plataforma de intolerância uma razão para serem admirados. Numa clara atitude de desrespeito ao terceiro mandamento do decálogo, o nome de Deus é tomado em vão por líderes religiosos que insistem em associá-lo ao de políticos, na tentativa de validar e conferir uma ‘autoridade divina’ aos seus projetos de poder nefastos. Sob o pretexto da defesa da família e dos valores, a discriminação e perseguição violenta das comunidades LGBTQIA+ é justificada e normalizada mundo afora. É popular a postura negacionista de se contrapor aos fatos e ignorar os efeitos destrutivos da ação humana sobre a natureza, além de outras tantas tendências devastadoras e abomináveis que precisam ser mudadas. A lista é longa e se distribui por toda a amplitude dos espectros políticos, ideológicos e religiosos, fazendo da intolerância o único ponto de convergência entre eles. Tais fatos corroboram a tese de Bauman (*) de que os elementos que produziram a maior tragédia do século 20 ‘podem ainda estar entre nós, à espera de uma oportunidade’, e que ‘se havia algo em nossa ordem social que tornou possível o Holocausto em 1941, não podemos ter certeza de que foi eliminado desde então’”. (NERY, 2023, p. 166)

 

(*). Citações de Zygmunt Bauman (1925-2017) em:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 109.

 

J.A.R. – H.C.

 

Millôr Fernandes

(1923-2012)

 

Saudação aos que vão ficar

 

Como será o Brasil

No ano dois mil?

As crianças de hoje

Já velhinhas então

Lembrarão com saudades

Deste antigo país

Desta velha cidade?

Que emoção, que saudade

Terá a juventude

Acabada a gravidade?

Respeitarão seus papais,

Cheios de mocidade?

Que diferença haverá

Entre o avô e o neto?

Que novas relações e enganos

Inventarão entre si

Os seres desumanos?

Que lei impedirá

Libertada a molécula

Que o homem

Cheio de ardor

Atravesse paredes

Buscando o seu amor?

Que lei de tráfego impedirá um inquilino

Ante o aluguel que vence

De voar para lugar distante

Na casa que não lhe pertence?

Haverá mais lágrimas ou mais sorrisos?

Mais loucura ou mais juízo?

E o que será loucura

E o que será juízo?

A propriedade, será um roubo?

O roubo, o que será?

Poderemos crescer todos bonitos?

E o belo não passará a ser feiura?

Haverá entre os povos uma proibição

De criar pessoas com mais de um metro e oitenta?

Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos) não farão,

Às ocultas, homens especiais que, de repente,

Possam duplicar o próprio tamanho?

Quem morará no Brasil no ano dois mil?

Que pensará o imbecil

No ano dois mil?

Haverá imbecis?

Militares ou civis?

Que restará a sonhar para o ano três mil

No ano dois mil?

 

28/4/1958

 

A boba

(Anita Malfatti: pintora paulistana)

 

Referências:

 

FERNANDES, Millôr. Saudação aos que vão ficar. In: __________. Essa cara não me é estranha e outros poemas. 1. ed. São Paulo, SP: Boa Companhia, 2014. p. 59-60.


NERY, Alberto. A vida sempre tem um sentido?: como encontrar significado nos altos e baixos de sua jornada. 1. ed. São Paulo, SP: Planeta do Brasil (Paidós), 2023.

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