Millôr especula, em
1958, sobre o Brasil e o mundo do futuro, ou melhor, na virada do século XX
para o XXI, pela via de um elenco de perguntas retóricas a açambarcar temas tão
diversos quanto o progresso tecnológico, as relações sociais, a moral, a lei e
a ordem. Consigne-se por oportuno que, naquele momento, o mundo, como hoje,
passava por grandes transições: a Guerra Fria estava no seu apogeu, a corrida
espacial acabara de começar e palpável era a ameaça de uma guerra nuclear.
Pouco mais de duas décadas
se passaram além do ponto futuro vislumbrado pelo poeta. Por conseguinte, já se
pode declinar um olhar do presente para o passado recente, um histórico tangível
daquilo em que o Brasil se transformou: um campo minado para ‘fake news’ –
sobretudo do espectro político que vai da direita a extrema-direita –, sem
qualquer apelo a valores éticos autênticos, senão a uma moral ultraconservadora
e retrógrada que se pretende impositiva ao outro âmbito da sociedade que não a recepciona
ou convalida, a pretexto, contraditoriamente, do exercício de uma “liberdade de
expressão” bem aos parâmetros de uma ordem fascista.
E sabem-se lá as
externalidades, sobretudo as de natureza negativa, que as denominadas
inteligências artificiais poderão engendrar no espaço que ora se denomina de
pós-modernidade, agora afeita a um mundo sem escrúpulos no qual domina a pós-verdade,
algo como um equivalente a viver sob mentiras ou campanhas difamatórias que
incorrem em explícitos delitos cominados legalmente, prejudicando ora a alguns,
ora a um grupo social, ora ainda a um amplo contingente de milhões.
Para ilustrar determinadas facetas desse universo de significativa imersão num oceano entrópico, transcrevem-se alguns excertos da obra “A vida sempre tem um sentido?”, do logoterapeuta Alberto Nery (v. referência completa ao final desta postagem), nos quais o autor destila uma crítica contundente à hipocrisia, à intolerância e ao desvio dos verdadeiros valores éticos e humanitários, por parte de algumas lideranças religiosas e políticas do país, que adotam discursos de ódio, discriminação e negacionismo, contrariando os preceitos fundamentais do amor ao próximo e do respeito à vida:
O discurso
institucional de muitos cristãos torna-se progressivamente vazio, conforme suas
preocupações passam a ser cada vez mais determinadas por pautas conservadoras
de usos e costumes e alinhadas a projetos de domínio político, do que pela
essência da mensagem de amor ao próximo ensinada pelo próprio Cristo. Por mais
contraditório que possa parecer, vemos uma parcela significativa de Igrejas
cristãs defendendo ideologias totalitárias, negacionistas, armamentistas, a
favor da pena de morte, homofóbicas e misóginas. Sacerdotes, padres e pastores
que se posicionam contrariamente a essas convenções acabam silenciados ou
‘cancelados’”. (NERY, 2023, p. 141)
“A xenofobia e o
preconceito ainda estão presentes em muitos países desenvolvidos que,
sistematicamente, fecham as portas para uma prosperidade, na maior parte das
vezes, conquistada a partir da exploração dos próprios países e dos povos aos
quais viram agora as costas e fecham suas fronteiras”. (NERY, 2023, p. 165).
“Políticos que pregam
o ódio e o extermínio de defensores de ideologias contrárias seguem populares,
fazendo de sua plataforma de intolerância uma razão para serem admirados. Numa
clara atitude de desrespeito ao terceiro mandamento do decálogo, o nome de Deus
é tomado em vão por líderes religiosos que insistem em associá-lo ao de
políticos, na tentativa de validar e conferir uma ‘autoridade divina’ aos seus
projetos de poder nefastos. Sob o pretexto da defesa da família e dos valores,
a discriminação e perseguição violenta das comunidades LGBTQIA+ é justificada e
normalizada mundo afora. É popular a postura negacionista de se contrapor aos
fatos e ignorar os efeitos destrutivos da ação humana sobre a natureza, além de
outras tantas tendências devastadoras e abomináveis que precisam ser mudadas. A
lista é longa e se distribui por toda a amplitude dos espectros políticos,
ideológicos e religiosos, fazendo da intolerância o único ponto de convergência
entre eles. Tais fatos corroboram a tese de Bauman (*) de que os elementos que
produziram a maior tragédia do século 20 ‘podem ainda estar entre nós, à espera
de uma oportunidade’, e que ‘se havia algo em nossa ordem social que tornou
possível o Holocausto em 1941, não podemos ter certeza de que foi eliminado
desde então’”. (NERY, 2023, p. 166)
(*). Citações de
Zygmunt Bauman (1925-2017) em:
BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro, RJ: Jorge
Zahar Editor, 1998. p. 109.
J.A.R. – H.C.
Millôr Fernandes
(1923-2012)
Saudação aos que vão
ficar
Como será o Brasil
No ano dois mil?
As crianças de hoje
Já velhinhas então
Lembrarão com
saudades
Deste antigo país
Desta velha cidade?
Que emoção, que
saudade
Terá a juventude
Acabada a gravidade?
Respeitarão seus
papais,
Cheios de mocidade?
Que diferença haverá
Entre o avô e o neto?
Que novas relações e
enganos
Inventarão entre si
Os seres desumanos?
Que lei impedirá
Libertada a molécula
Que o homem
Cheio de ardor
Atravesse paredes
Buscando o seu amor?
Que lei de tráfego
impedirá um inquilino
Ante o aluguel que
vence
De voar para lugar
distante
Na casa que não lhe
pertence?
Haverá mais lágrimas
ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais
juízo?
E o que será loucura
E o que será juízo?
A propriedade, será
um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer
todos bonitos?
E o belo não passará
a ser feiura?
Haverá entre os povos
uma proibição
De criar pessoas com
mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá,
os Estados Unidos) não farão,
Às ocultas, homens
especiais que, de repente,
Possam duplicar o
próprio tamanho?
Quem morará no Brasil
no ano dois mil?
Que pensará o imbecil
No ano dois mil?
Haverá imbecis?
Militares ou civis?
Que restará a sonhar
para o ano três mil
No ano dois mil?
28/4/1958
A boba
(Anita Malfatti:
pintora paulistana)
Referências:
FERNANDES, Millôr.
Saudação aos que vão ficar. In: __________. Essa cara não me é estranha e
outros poemas. 1. ed. São Paulo, SP: Boa Companhia, 2014. p. 59-60.
NERY, Alberto. A
vida sempre tem um sentido?: como encontrar significado nos altos e baixos
de sua jornada. 1. ed. São Paulo, SP: Planeta do Brasil (Paidós), 2023.
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