Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Hart Crane - Passagem

Entre a identidade fragmentada e uma memória que tem lá as suas fragilidades – sendo como é, tão enganosa e falível –, o falante expressa um desejo de renovação através do contato com a natureza, com o objetivo de superar um passado que lhe parece não recuperável por completo, rumo a algo desconhecido no futuro, mas que se pautaria, decerto, por um estado de consciência mais elevado.

 

Como em muitos poemas já aqui postados, estes versos de Crane revelam o interesse do ente lírico em compreender melhor este mundo em fluxo constante de mudanças, deduzindo-lhe os significados, tudo para dar sentido à viagem de sua alma em busca de si mesma, muito embora reconheça a impossibilidade de captar o núcleo essencial de todas as coisas tão apenas por meio de palavras, ou melhor, pela via da mente racional.

 

J.A.R. – H.C.

 

Hart Crane

(1899-1932)

 

Passage

 

Where the cedar leaf divides the sky

I heard the sea.

In sapphire arenas of the hills

I was promised an improved infancy.

 

Sulking, sanctioning the sun,

My memory I left in a ravine,–

Casual louse that tissues the buck-wheat,

Aprons rocks, congregates pears

In moonlit bushels

And wakens alleys with a hidden cough.

 

Dangerously the summer burned

(I had joined the entrainments of the wind).

The shadows of boulders lengthened my back:

In the bronze gongs of my cheeks

The rain dried without odour.

 

“It is not long, it is not long;

See where the red and black

Vine-stanchioned valleys–”: but the wind

Died speaking through the ages that you know

And bug, chimney-sooted heart of man!

So was I turned about and back, much as your smoke

Compiles a too well-known biography.

 

The evening was a spear in the ravine

That throve through very oak. And had I walked

The dozen particular decimals of time?

Touching an opening laurel, I found

A thief beneath, my stolen book in hand.

 

“Why are you back here – smiling an iron coffin?”

“To argue with the laurel”, I replied:

“Am justified in transience, fleeing

Under the constant wonder of your eyes–.”

 

He closed the book. And from the Ptolemies

Sand troughed us in a glittering abyss.

A serpent swam a vertex to the sun

– On unpaced beaches leaned its tongue and

drummed.

What fountains did I hear? What icy speeches?

Memory, committed to the page, had broke.

 

A Memória

(René Magritte: artista belga)

 

Passagem

 

Ali onde a folha do cedro divide o céu

Eu ouvi o mar.

Nas arenas de safira das montanhas

Recebi a promessa de uma infância melhor.

 

Enfadada, corroborando o sol,

Minha memória deixei numa ravina:

– Piolho casual que tece o trigal,

Veste rochedos, congrega peras

Em alqueires enluarados

E acorda as alamedas com uma tosse oculta.

 

O verão queimou perigosamente

(Eu me reunira ao roldão do vento).

As sombras dos penedos alongavam meu dorso:

Nos gongos de bronze de minhas faces

A chuva secava sem odor.

 

“Não demora, não demora;

Veja os vales negros e vermelhos

Eriçados de vinhas”... Mas o vento

Morreu falando através das idades que conheces

E abraças, ó coração do homem, fuliginoso!

Assim, me voltei sobre mim ao modo de teus fumos,

Revisando uma biografia por demais conhecida.

 

O entardecer era um dardo na ravina

Florescendo dentro de um carvalho. Teria eu

Percorrido a exata dúzia de decimais do tempo?

Tocando um loureiro que se abria, encontrei

Debaixo dele um ladrão com o livro que me roubara.

 

“Para que retornas – sorrindo um esquife de ferro?”

“Para discutir com o loureiro”, respondi.

“Justifica-me o transitório, vivo a fugir

Sob o vagar constante dos teus olhos...”

 

Ele fechou o livro. E desde a areia

De Ptolomeu despenhou-se comigo num abismo

resplandecente.

Uma serpente fez nadar um vértice para o sol

E sobre praias virgens estendeu a língua tamborilante.

Que fontes ouvira eu? Que discurso de gelo?

Minha memória, confinada à página, ruíra.

 

Referência:

 

CRANE, Hart. Passage / Passagem. Tradução de Jorge Wanderley. In: WANDERLEY, Jorge (Seleção, tradução e notas). Antologia da nova poesia norte-americana. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1992. Em inglês: p. 170 e 172; em português: p. 171 e 173.

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