Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 30 de junho de 2025

John Keats - No mar

Neste soneto, Keats nos faz mergulhar na imensidão e nos mistérios do mar, essa força poderosa que, ao mesmo tempo que inunda, com suas ondas contínuas e troantes, as incontáveis cavernas costeiras, em outros azos se mostra sereno, com águas pacíficas, quase paradas, pouco alterando o estado das pequenas conchas que se agrupam ao longo dos litorais.

 

Transportando-nos, assim, do sublime e possante ao pacífico e deslumbrante, o poeta nos convida a contemplarmos esse prodígio da natureza, envolto numa atmosfera mágica e indômita sob o domínio dos sortilégios perpetrados pela deusa grega Hécate, mas também a evocar, por meio do supradito rumorejo de suas vagas, os imaginosos coros místicos das ninfas – tão decantados pelos vates.

 

J.A.R. – H.C.

 

John Keats

(1795-1821)

Retrato de William Hilton

 

On the sea

 

It keeps eternal whisperings around

Desolate shores, and with its mighty swell

Gluts twice ten thousand caverns, till the spell

Of Hecate leaves them their old shadowy sound.

Often ’tis in such gentle temper found,

That scarcely will the very smallest shell

Be moved for days from where it sometime fell,

When last the winds of heaven were unbound.

Oh ye! who have your eye-balls vex’d and tired,

Feast them upon the wideness of the sea;

Oh ye! whose ears are dinn’d with uproar rude,

Or fed too much with cloying melody, –

Sit ye near some old cavern’s mouth, and brood

Until ye start, as if the sea-nymphs quired!

 

A onda

(Gustave Courbet: pintor francês)

 

No mar

 

Ele sustém eternos murmúrios

Nas praias desoladas, e com suas soberbas cristas

Inunda vinte mil cavernas, até que o sortilégio

De Hécate as deixe com seu velho e assombroso som.

Muitas vezes se encontra tão tranquilo,

Que até a menor das conchas permanece dias imóvel

Desde o desenlace dos ventos celestiais.

Vós, cujos olhos se enchem de tormento e tédio,

Regozijai-os com a imensidão do mar,

Vós, cujos ouvidos estão atordoados pelo rude ruído,

Ou enfastiados pela música melosa –

Sentai-vos na boca de ama velha caverna, e meditai

Até que escuteis, como se cantassem, as ninfas do mar!

 

Referência:

 

KEATS, John. On the sea / No mar. Tradução de Alberto Marsicano e John Milton. In: __________. Nas invisíveis asas da poesia. Tradução de Alberto Marsicano e John Milton. 3. ed. São Paulo, SP: Iluminuras, 2002. Em inglês: p. 16; em português: p. 17.

domingo, 29 de junho de 2025

Ezra Pound - Balada do Bom Companheiro

A refletir um hipotético depoimento de Simão, o Zelota – um dos discípulos de Jesus –, este longo poema de Pound – escrito num dialeto inglês arcaico –, é, de fato, um lamento pelo que veio a ocorrer ao seu “Bom Companheiro” – a morte na cruz –, muito embora a mensagem desse homem extraordinário ainda ressoe com vigor nos dias que correm.

 

Sublinhe-se o tom evocador de uma atmosfera quase mística, distanciada no tempo, a perpassar a trama dos versos, no curso da qual se tem uma representação de Cristo como um líder carismático, contemplado a partir de um ponto de vista secular e humano, a exteriorizar a sua intrepidez e personalidade desafiadora diante das autoridades e das próprias adversidades que esperava encontrar mais à frente.

 

Com efeito, o descritor do que então se passa enfatiza a capacidade do Nazareno em realizar milagres e de enfrentar a morte com uma calma algo estoica, qualidades que, num plano metafórico, associam-se mais de perto aos atributos do mar – pois que as grandes águas não costumam conhecer limites ou restrições –, mas que, no âmbito dos relacionamentos entre aqueles confrades, espelham o exemplo de fortaleza do “Bom Companheiro” para com os seus discípulos, homens rústicos e simples.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ezra Pound

(1885-1972)

 

Ballad of the Goodly Fere (*)

 

Simon Zelotes speaketh it somewhile

after the Crucifixion

 

Ha’ we lost the goodliest fere o’ all

For the priests and the gallows tree?

Aye lover he was of brawny men,

O’ ships and the open sea.

 

When they came wi’ a host to take Our Man

His smile was good to see,

“First let these go!” quo’ our Goodly Fere,

“Or I’ll see ye damned,” says he.

 

Aye he sent us out through the crossed high spears

And the scorn of his laugh rang free,

“Why took ye not me when I walked about

Alone in the town?” says he.

 

Oh we drank his “Hale” in the good red wine

When we last made company,

No capon priest was the Goodly Fere

But a man o’ men was he.

 

I ha’ seen him drive a hundred men

Wi’ a bundle o’ cords swung free,

That they took the high and holy house

For their pawn and treasury.

 

They’ll no’ get him a’ in a book I think

Though they write it cunningly;

No mouse of the scrolls was the Goodly Fere

But aye loved the open sea.

 

If they think they ha’ snared our Goodly Fere

They are fools to the last degree.

“I’ll go to the feast,” quo’ our Goodly Fere,

“Though I go to the gallows tree.”

 

“Ye ha’ seen me heal the lame and blind,

And wake the dead,” says he,

“Ye shall see one thing to master all:

Tis how a brave man dies on the tree.”

 

A son of God was the Goodly Fere

That bade us his brothers be.

I ha’ seen him cow a thousand men.

I have seen him upon the tree.

 

He cried no cry when they drave the nails

And the blood gushed hot and free,

The hounds of the crimson sky gave tongue

But never a cry cried he.

 

I ha’ seen him cow a thousand men

On the hills o’ Galilee,

They whined as he walked out calm between,

Wi’ his eyes like the grey o’ the sea,

 

Like the sea that brooks no voyaging

With the winds unleashed and free,

Like the sea that he cowed at Genseret

Wi’ twey words spoke’ suddently.

 

A master of men was the Goodly Fere,

A mate of the wind and sea,

If they think they ha’ slain our Goodly Fere

They are fools eternally.

 

I ha’ seen him eat o’ the honey-comb

Sin’ they nailed him to the tree.

 

A descida da cruz

(Peter Paul Rubens: pintor flamengo)

 

Balada do Bom Companheiro

 

Pronunciamento de Simão, o Zelota,

algum tempo depois da Crucificação

 

Oh! Perdemos o melhor companheiro dentre todos

para os sacerdotes e o madeiro?

Sim, era ele propenso ao trato com homens robustos,

barcaças e o mar aberto.

 

Quando em hoste vieram prender o Nosso Homem,

seu sorriso era digno de ser visto:

“Primeiro deixeis que estes possam retirar-se”, vindicou,

“ou hei de os ver condenados”.

 

Então nos fez passar por entre lanças altas e cruzadas,

e logo ressoou o livre desdém do seu riso.

“Por que não me prendestes quando caminhava

sozinho pela cidade?”, indagou-lhes.

 

Oh, bebemos à sua “Saúde” com um bom vinho tinto,

quando lhe fizemos companhia pela última vez;

o Bom Companheiro não era um cura afetado,

senão um homem entre os homens.

 

Vi-o investir contra uma centena de homens

com um feixe de cordas soltas a brandir,

assim que eles converteram a sagrada e alta casa

em um centro de penhores e de tesouraria.

 

Creio que não o mencionarão em um livro,

a despeito de que os escrevam destramente.

O Bom Companheiro não era um rato de pergaminhos,

senão um amante do alto mar.

 

Se pensam que capturaram nosso Bom Companheiro,

são tolos até o último grau.

“Partirei para um banquete”, assegurou a todos,

“ainda que me levem ao madeiro”.

 

“Vós me vistes curar os coxos e os cegos

e despertar os mortos”, disse ele,

“mas vereis algo que a tudo supera:

como um homem intrépido morre num madeiro”.

 

Era um filho de Deus o Bom Companheiro,

que nos instou a sermos seus irmãos.

Vi-o a acovardar mil homens,

vi-o fincado ao madeiro.

 

Não lançou grito algum ao lhe fixarem os cravos,

fazendo o sangue jorrar quente e livre;

ladraram os lebréus de um céu carminado,

mas dele jamais se ouviu qualquer gemido.

 

Vi-o a acovardar mil homens

nas colinas da Galileia,

e enquanto se lamuriavam, tranquilo no meio deles

caminhava, com seus olhos como o cinza do mar,

 

como o mar que não possibilita viagens

com seus ventos desatrelados e livres,

como o mar que ele amainou em Genesaré

com palavras suaves ditas de repente.

 

Era o Bom Companheiro um mestre dos homens,

um íntimo do vento e do mar.

Se pensam que mataram nosso Bom Companheiro,

são tolos por toda a eternidade.

 

Vi-o comer o mel dos favos,

depois que o pregaram no madeiro.

 

Nota:

 

(*). Fere: anglo-saxão e inglês antigo, a significar camarada, companheiro.

 

Referência:

 

POUND, Ezra. Ballad of the goodly fere. In: __________. Ezra Pound’s poetry and prose: contributions to periodicals. In ten volmues. Volume I: 1902-1914. Prefaced and arranged by Lea Baechler, A. Walton Litz and James Longenbach. New York; London: Garland Publishing Inc., 1991. p. 24-25.

sábado, 28 de junho de 2025

Jules Supervielle - O apelo

Uma nota prévia ao escólio: embora houvesse encontrado na internet um poema de Supervielle com o título em francês “L’appel”, não correspondia ele à tradução ao português, abaixo transcrita, elaborada pelo poeta Manuel Bandeira (1886-1968), com o que por ora fico a dever a ode no original, prontificando-me, nada obstante, a incluir um “post scriptum” a esta postagem, caso venha a obtê-la.

 

Talvez, com boa dose de probabilidade, este poema tenha sido escrito pelo poeta quando se encontrava em Montevidéu, para onde se deslocou com a declaração da 2GM, em 1939, somente retornando à França em 1946: tal especulação deve-se ao fato de que há menção, nos versos, a um “apelo” vindo de longe – nomeadamente “do fundo da guerra, do fundo da França” –, atravessando o oceano, e que, tendo alcançado o falante, logo reverberou em seu coração.

 

Com o fim do conflito bélico e o consequente restabelecimento da França, esse “pequenino apelo” – um grito débil e persistente em busca de refúgio –, já agora vai-se extinguindo, podendo render-se ao silêncio e morrer em paz, com o que se comuta a angústia prévia do poeta por uma sensação de consolo e de esperança.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jules Supervielle

(1884-1960)

 

O apelo

 

Um apelo, um grito

Longínquo, abafado,

Quase imperceptível,

Erra no infinito

Coração da noite.

Do fundo da guerra,

Do fundo da França,

Expirando avança,

Desmaia, persiste,

Procura ganhar

Força e consistência

No espaço, procura

Com perseverança

Um apoio à beira

Do silêncio enorme.

Súbito me escolhe

E cala-se em mim.

Sirvo-lhe de abrigo,

Sirvo-lhe de leito,

Ajudo-o a acabar.

Como conseguiste,

Persistente apelo,

Passar o oceano,

Entrar no meu tempo,

Nele demorar?

De que lábio humano,

De que fundas trevas

Vens como expressão

De última vontade?

De que subterrâneo

Ou de que retiro

De lenta agonia

Até mim te elevas,

Lânguido suspiro,

Último suspiro?

Pequenino apelo

Quase a perecer,

Acabou-se a guerra,

A França renasce:

Poderás já agora

Ceder ao silêncio,

Deixar-te morrer.

 

O chamado

(Paul Gauguin: pintor francês)

 

Referência:

 

SUPERVIELLE, Jules. O apelo. Tradução de Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Poemas traduzidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. p. 44-45. (Coleção ‘Rubáiyát’)