Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Xavier Villaurrutia - Inventar a verdade

O poeta mexicano bem sabe que o amor é um sentimento complexo que nem sempre se pode explicar com palavras, um afeto que se desenvolve lentamente, sem que nos demos conta. Por isso, há que se ter sensibilidade para tentar decifrar as razões pelas quais o coração, em dado momento, põe-se a bater com mais intensidade, capturado por emoções ou paixões decerto despertadas por alguém de interesse.

 

O amor, quando ainda em seus preâmbulos, quase sempre paira entre a autenticidade factual e o equívoco, tendo em vista a dificuldade de se expressar a “verdade” emocional com precisão, tanto mais porque avança do meramente familiar ao amplo terreno do desconhecido, dando margem a que emoções reais se ocultem amiúde por trás de uma fachada tendente a negá-las.

 

J.A.R. – H.C.

 

Xavier Villaurrutia

(1903-1950)

 

Inventar la verdad

 

Pongo el oído atento al pecho,

como, en la orilla, el caracol al mar.

Oigo mi corazón latir sangrando

y siempre y nunca igual.

Sé por qué late así, pero no puedo

decir por qué será.

 

Si empezara a decirlo con fantasmas

de palabras y engaños al azar,

llegaría, temblando de sorpresa,

a inventar la verdad:

¡Cuando fingí quererte, no sabía

que te quería ya!

 

De: “Canto a la primavera y otros poemas” (1948)

 

A verdade está em meu coração

(Mark Witzling: artista norte-americano)

 

Inventar a verdade

 

Ponho o ouvido atento ao peito,

como, no litoral, o caracol ao mar.

Ouço meu coração pulsar sangrando

e sempre e nunca igual.

Sei por quem pulsa assim, porém não posso

dizer por que será.

 

Se começasse a dizê-lo com fantasmas

de palavras e enganos a esmo,

chegaria, tremendo de surpresa,

a inventar a verdade:

Quanto fingi querer-te, não sabia

que te queria mesmo!

 

Em: “Canto à primavera e outros poemas” (1948)

 

Referência:

 

VILLAURRUTIA, Xavier. Inventar la verdad. In: JIMÉNEZ, José Olivio (Selección, prólogo y notas). Antología de la poesía hispanoamericana contemporánea: 1914-1970. 7. ed. Madrid, ES: Alianza Editorial, 1984. p. 296-297. (‘El Libro de Bolsillo’)

domingo, 1 de dezembro de 2024

Gilberto Mendonça Teles - O visionário

A sombra de uma cruz que se pressupõe divina, com alcance e poder para vencer o mal, abre espaços à clarividência e à iluminação, trazendo vida e abundância àqueles que, por meio dela, deixam-se transformar por sua mensagem de amor, mensagem essa capaz de ser um robusto elemento divisor a discernir e separar as águas da verdade, indiferenciadas no turbulento mar das paixões humanas.

 

A rigor, o poema de Teles permite inúmeras interpretações, mas a que me parece mais ostensiva é exatamente a que acima declino, ou seja, a afirmar o poder do amor para superar o mal e a escuridão. Poder-se-ia, nada obstante, em função do título do poema – “O visionário” –, atribuir-se o cenário nele descrito, por exemplo, à visão dos jesuítas em geral (ou a algum deles, em específico) que aqui estiveram à época do descobrimento do Brasil, trazendo o cristianismo às terras de Pindorama.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gilberto Mendonça Teles

(n. 1931)

 

O visionário

 

E vai a sombra da cruz

se projetou no horizonte

e veio vindo nos campos,

roçando estradas e rios,

aplainando num só corpo

as depressões e montanhas

e endireitando as veredas

e os caminhos.

 Sombra imensa

que foi desfazendo as trevas,

serrando troncos cansados,

cegando os olhos das feras,

abrindo os olhos das aves

e as cobras todas queimando,

multiplicando os insetos

e os frutos multiplicando,

fazendo peixe das folhas

e nas pedras assoprando

um pensamento de amor.

Então as pedras tremeram,

se levantaram cantando

e foram seguindo o rumo

da sombra que se afastava

para o seu rumo nenhum.

Mas quando a sombra chegou

à linha d'água da praia

e como um pássaro leve

se deslizou pelo mar,

o vento que não soprava

se pôs furioso a soprar

e as águas que eram um só corpo

tiveram que separar-se:

um grande túnel de vidro

foi devorando o silêncio

da sombra que se entregava

pousando o braço direito

nos ombros da humanidade.

 

Em: “Pássaro de Pedra” (1962)

 

Destino Humano

(Alfred Kubin: artista austríaco)

 

Referência:

 

TELES, Gilberto Mendonça. O visionário. In: __________. Melhores poemas de Gilberto Mendonça Teles. Seleção de Luiz Busatto. 4. ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo, SP: Global, 2007. p. 50-51. (Coleção ‘Melhores Poemas’)