Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Abgar Renault - 31 de dezembro de 1932

Nada melhor como o derradeiro dia do ano para avaliar os momentos pelos quais passamos ao longo dos últimos doze meses, quer positivos, quer arrevesados: em meio a feitos significativos, agradáveis ou belos, ocorreram, decerto, outros tantos que transitaram na contramão, haja vista que associados a experiências dolorosas ou mesmo baldadas, das quais, seja como for, haveremos de extrair proveitosas lições para as jornadas vindouras.

 

Entre sereno e nostálgico, o poeta valoriza os momentos simples, mas relevantes, pelos quais passou em vida – afinal, “nem todos os caminhos foram descaminhos” –, e mesmo sob a incerteza do amanhã, obstina-se em depositar as suas esperanças nas mãos da Providência, confiante de que dias melhores virão, mantendo inquebrantável o ânimo em proveito de inéditas incursões ainda neste plano de existência.

 

J.A.R. – H.C.

 

Abgar Renault

(1901-1995)

 

31 de dezembro de 1932

 

Tão bom pensar, depois de ter andado tanto,

que nem todos os caminhos foram descaminhos,

nem todas as horas passaram vazias e distantes,

nem todas as flores de um íntimo jardim se desfolharam

ou emurcheceram,

nem todas as estrelas não se acenderam

ao infinito gesto das nossas mãos,

nem todas as cartas que escrevia um coração ficaram

sem resposta,

e nem todas as coisas más aconteceram,

que poderiam ter acontecido...

 

Tão bom trazer nos olhos, cheios ainda de

uns restos de infância,

aquelas paisagens que nos foram fazendo longe

e acolheram por minutos a alma cansada

da vesga, incompreensível caminhada...

 

Tão bom recordar humildes coisas ocultas,

que vieram, sem intenção, nos inesperados de cada dia,

despertar em nós obliterado sentido

e revelar ao nosso ouvido

o segredo de que ainda restam dois ou três pássaros

cantando nas últimas árvores,

namorados ainda líricos e pálidos

dizendo-se em palavras de silêncio

montes e mares de infinitas coisas

sob o patrocínio discreto do crepúsculo...

 

Noites cheias de lua

a clarear antigos córregos

e a longa, incerta rua que nasceu na infância...

sinos românticos a ecoar cristalinamente

nas manhãs cheias de domingo e vozes azuis...

 

Tão bom ficar assim, noturnamente, num fim de ano,

olhos cerrados, alma escancarada,

o pensamento esquecido lá longe em vagas coisas,

sentindo o tempo fugir por entre os dedos

e relembrando o que foi, o que não foi, e dizer, sem palavras,

que a vida está por aí brincando de esconder conosco

e que amanhã, se Deus quiser, ela continuará...

 

Sozinho ao Final

(Prakob Thaicharoen: artista tailandês)

 

Referência:

 

RENAULT, Abgar. 31 de dezembro de 1932. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1990. p. 82.

 

 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Mary Oliver - Uma Coruja Branca Entra e Sai Voando Sobre a Pradaria

Mesmo que a morte seja, indiscutivelmente, o tema principal deste poema de Oliver, suponho que poderíamos tomá-lo como uma metáfora para todos os fins de ciclo – como um ano que se encerra –, quando esperamos entrar numa fase de transição para uma nova forma de ser, mais aprimorada, a espelhar a luz, símbolo maior de uma verdadeira transformação e catarse.

 

O mocho branco é o ícone desse traspasse, não como um termo soturno, senão como um equivalente a um brilho “aórtico”, tudo para denotar a aliança do eu a algo maior, uma fusão com a essência mesma da vida, para além das limitações deste plano terrenal: a beleza, a precisão e a graça com que o mocho aparece e desaparece são como que a elegância e a inevitabilidade dos ciclos em nossas finitas existências.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mary Oliver

(1935-2019)

 

White Owl Flies Into and Out of the Field

 

Coming down out of the freezing sky

with its depths of light,

like an angel, or a Buddha with wings,

it was beautiful, and accurate,

striking the snow and whatever was there

with a force that left the imprint

of the tips of its wings – five feet apart –

and the grabbing thrust of its feet,

and the indentation of what had been running

through the white valleys of the snow –

and then it rose, gracefully,

and flew back to the frozen marshes

to lurk there, like a little lighthouse,

in the blue shadows –

so I thought:

maybe death isn’t darkness, after all,

but so much light wrapping itself around us –

as soft as feathers –

that we are instantly weary of looking, and looking,

and shut our eyes, not without amazement,

and let ourselves be carried,

as through the translucence of mica,

to the river that is without the least dapple or shadow,

that is nothing but light – scalding, aortal light –

in which we are washed and washed

out of our bones.

 

Corujas Nevadas

(John J. Audubon: naturalista franco-americano)

 

Uma Coruja Branca Entra e Sai Voando Sobre a Pradaria

 

Descendo de um céu glacial

com seus abismos de luz,

feito um anjo ou um Buda com asas,

era bela e certeira,

atingindo a neve e o que quer que lá houvesse

com uma força que deixou a marca

da ponta de suas asas – a cinco pés de distância –

e o impulso captor de suas garras,

além de uma cissura sobre o que estava se passando

por entre os vales brancos da neve –;

a seguir, ergueu-se graciosamente,

alçando voo em regresso aos pântanos congelados

para ali se esconder, como um pequeno farol,

entre as sombras azuis –

e então eu pensei:

talvez a morte não seja, afinal, a escuridão,

mas tanta luz a enroscar-se à nossa volta –

tão suave quanto plumas –

que de tanto as fitar e fitar, logo nos cansamos,

e fechamos os olhos, não sem espanto,

e deixamo-nos levar,

como se através da translucidez de uma mica,

até o rio que não tem a menor mancha ou sombra,

que nada é senão luz – luz escaldante, aórtica –

na qual somos lavados e lavados

até os nossos ossos.

 

Referência:

 

OLIVER, Mary. White owl flies into and out of the field. In: __________. House of light. Boston, MA: Beacon Press, 1990. p. 79. 

 

domingo, 29 de dezembro de 2024

José María Pemán - Presença de Deus

O falante descreve a sua experiência ao buscar Deus na natureza e dentro de si mesmo: estabelecendo uma íntima conexão com a criação divina, entra em unidade com a pradaria, o bosque e o verão, numa fusão que se predica como de total entrega, mediante a apreensão dos sentidos, os vestígios dos lanhos d’alma, o autoexame.

 

Ante um sentimento de tratar-se de um mero grão de areia frente à imensidade de Deus, o ente lírico abre sua alma às experiências sensoriais, testemunhando-nos o seu arrebatamento místico num misto de enlevo e de transfigurações verbais, de pesares e de júbilos, de calor e de plenitude, em meio ao qual anela por expandir-se espiritualmente.

 

J.A.R. – H.C.

 

José María Pemán

(1897-1981)

 

Presencia de Dios

 

He entrado en unidad con la pradera:

camino del magnífico, entregado,

desplome de mi ser en lo divino.

 

He entrado en unidad con ese bosque

que es todo ruiseñor y es todo pena,

como el bosque que llevo en mis entrañas.

 

He entrado en unidad con el estío:

y sus turbias raíces del pecado

le han servido de tronco a mi azucena.

 

Me duelen mis fronteras sensuales,

mis vallados humanos, por vecinos

del incendio de Dios y los amores.

 

Me duelen como deben de dolerles

a los granos de arena las espumas,

como al fondo del mar, la gran turquesa.

 

Se llega a Dios por todos mis sentidos.

Se llega a Dios por todas mis heridas.

Se llega a Dios mirándome a los ojos.

 

Por las acequias rojas de mis venas

va la sangre moviendo el gran molino

de una oración enorme y sin palabras.

 

Se me em quedado anoche, junto al alma,

abierto el portoncillo de la pena:

...y Dios estaba, con el sol primero,

sentado, allí, em las flores.

 

Estrela de Belém

(Elihu Vedder: artista norte-americano)

 

Presença de Deus

 

Entrei em unidade com a pradaria:

caminho da magnífica, subjugada,

fusão do meu ser no divino.

 

Entrei em unidade com esse bosque

que é todo rouxinol e todo aflição,

como o bosque que carrego nas entranhas.

 

Entrei em unidade com o verão:

e suas turvas raízes do pecado

serviram de tronco para o meu lírio.

 

Doem-me as minhas lindes sensuais,

minhas sebes humanas, pois que vizinhas

do fogo de Deus e dos amores.

 

Doem-me como devem doer

as espumas aos grãos de areia,

como a grande turquesa ao fundo do mar.

 

Chega-se a Deus por todos os meus sentidos.

Chega-se a Deus por todas as minhas feridas.

Chega-se a Deus olhando-me nos olhos.

 

Pelos drenos vermelhos de minhas veias

vai o sangue a mover o grande moinho

de uma oração enorme e sem palavras.

 

Ontem à noite, junto à minh’alma,

o portãozinho da aflição permaneceu aberto:

...e Deus estava, com o sol primeiro,

sentado, ali, entre as flores.

 

Referência:

 

PEMÁN, José María. Presencia de Dios. In: SANTIAGO, Miguel de (Introducción y recopilación). Antología de poesía mística española. 1. ed. Barcelona, ES: Verón Editores, jul. 1998. p. 196.

  

sábado, 28 de dezembro de 2024

Carlos Bousoño - A luz de Deus

A noite, essa experiência de escuridão e mistério que se vivencia quando a claridade do dia se desvanece, é também o intercurso durante o qual podemos “apalpar” a morte e “pressentir” um sonho mais elevado que a própria vida: é no meio de um desmedido negror que a luz divina se manifesta e se nos revela, fundindo-se com a alma dos simples mortais.

 

Deus feito luz cobre os céus e a alma já não existe nessa metáfora tanto mais válida para o espírito humano do que para a vastidão do mundo exterior, em sua realidade física: iluminados pela presença do Eterno faremos de nosso firmamento um zimbório estrelado de onde poderemos contemplar a eternidade, entrando em harmonia com toda a gente e a natureza em nosso entorno.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Bousoño

(1923-2015)

 

La luz de Dios

 

Hace falta la noche. Es necesaria

la noche honda. Entre la sombra ambigua

palpar la muerte, y presentir un sueño

más alto que la vida.

 

Mucha noche hace falta en las estrelas,

pero más en el alma se precisa.

Mucha noche hace falta

que caiga grave en su honda mina.

 

Tu aparición entonces sobre el cielo

del alma en vasta noche oscurecida,

allá en el más profundo firmamento,

nos alza y califica.

 

Tu luz desciende clara.

El Cielo llueve. Mójese la vida.

Toda mi alma en el amor se empapa

donde empieza la luz, donde termina.

 

Oh alma traspasada,

bebes luz que descende. Calla. Mira.

Ya te adelgazas, y eres sólo viento.

Y menos, y eres brisa.

 

Dios en la brisa.  Puros cielos suaves.

No existe el mundo. Espacio sólo brilla.

El alma aspira, llega, toca, gime

de amor, y se retira.

 

Dios hecho luz cubre los cielos.

Tú ya no existes, alma mía.

Sólo el espacio iluminado.

Sólo la luz se extiende límpida.

 

En: “Subida al amor” (1945)

 

Luz Divina

(Patrícia K. Bollinger: artista norte-americana)

 

A luz de Deus

 

Faz falta a noite. Necessária é

a noite profunda. Entre a sombra ambígua

apalpar a morte, e pressentir um sonho

mais alto que a vida.

 

Muita noite faz falta nas estrelas,

mas, na alma, dela se precisa bem mais.

Muita noite faz falta para se cair

a sério em sua mina profunda.

 

Tua aparição, então, sobre o céu

da alma, em vasta e escurecida noite,

lá no mais profundo firmamento,

nos eleva e dignifica.

 

A tua luz desce clara.

O céu chove. Que a vida se molhe.

Toda a minh’alma no amor se encharca

onde começa a luz, onde ela termina.

 

Ó alma trespassada,

bebes a luz que desce. Cala. Olha.

Já te emacias, e és só vento.

Menos ainda, és brisa.

 

Deus na brisa. Puros e suaves céus.

Não há o mundo. O espaço só brilha.

A alma aspira, chega, toca, geme

de amor e se retira.

 

Deus feito luz cobre os céus.

Tu já não existes, alma minha.

Apenas o espaço iluminado.

Límpida, só a luz a se propagar.

 

Em: “Subida ao amor” (1945)

 

Referência:

 

BOUSOÑO, Carlos. La luz de Dios. In: __________. Poesía – Antologia: 1945-1993. Edición de Alejandro Duque Amusco. 2. ed. Madrid, ES: Espasa Calpe, 1995. p. 77-78. (Colección ‘Austral’; v. 313)