Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Vitorino Nemésio - O Bicho Harmonioso

Entrelaçadas nestes versos de Nemésio estão suas aspirações e frustrações em sua lida de poeta, suas próprias limitações, assim como as conexões de tal mister com a família e a memória: a esse “bicho harmonioso”, ciente de que não se converteu no poeta que aspirava a ser, que não alcançou a imortalidade através da Lírica, somente resta uma sensação de malogro e a resignação com o fado divisado.

 

Entre o anelo de um “alto destino de poeta”, de “sagração natural” por meio do que haja experimentado em vida – para então poder vogar gratificado entre os mistérios da natureza e o coração das pessoas –, e aquilo com o que, efetivamente, o poeta se deparou, o falante vislumbra uma grande distância.

 

Mas tudo não passa – perceba lá o internauta – de honrada modéstia do poeta. Afinal, que grande vate foi Nemésio, ele, como tantos outros, a reconhecer o quão efêmera é a volta que damos ao mundo, como a “ramagem fremente” dos dedos impressa na terra, “estranho fóssil” a sinalizar nossa breve presença por estas paragens do domínio “espaço x tempo”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vitorino Nemésio

(1901-1978)

 

O Bicho Harmonioso

 

Eu gostava de ter um alto destino de poeta,

Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes

E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves

Que passam a tarde numa estrela,

A força do calor na bica de uma fonte

E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

 

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata,

Abstratos mas vivos,

Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,

Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,

Misturado às ervas grossas da chuva

E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco.

Ser a vida e não ter já vida era um destino.

 

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido,

A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,

Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural:

Não digo como as Virgens Aparecidas,

Que tornam mudos e radiosos os pastorinhos,

Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno,

Para lá da janela a luz cortada por chuva,

E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;

Mar ao fundo.

 

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,

E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,

E preguiça,

Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor

E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica

Desse amor forrado de desgosto,

Como as estrelas encobertas,

Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:

 

Tudo isto seria aquele poeta que não sou,

Feito graça e memória,

Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,

Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida

Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

 

Mas não. Do canto necessário

Para me diluir em som e no ar que o guardasse

(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)

Não chego a soltar senão uma vaga nota,

E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos

No meu buraco vil de bicho harmonioso.

 

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,

A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra

Estranho fóssil!

 

Boulogne-sur-Seine, Páscoa de 1935.

Em: “O Bicho Harmonioso” (1938)

 

Fusão Harmoniosa

(Michael Külbel: artista alemão)

 

Referência:

 

NEMÉSIO, Vitorino. O bicho harmonioso. In: __________. Antologia poética. Apresentação e selecção de Vasco Graça Moura. 1. ed. Lisboa, PT: Edições Asa, abr. 2002. p. 33-34.

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