Entrelaçadas nestes
versos de Nemésio estão suas aspirações e frustrações em sua lida de poeta,
suas próprias limitações, assim como as conexões de tal mister com a família e
a memória: a esse “bicho harmonioso”, ciente de que não se converteu no poeta
que aspirava a ser, que não alcançou a imortalidade através da Lírica, somente
resta uma sensação de malogro e a resignação com o fado divisado.
Entre o anelo de um “alto
destino de poeta”, de “sagração natural” por meio do que haja experimentado em
vida – para então poder vogar gratificado entre os mistérios da natureza e o
coração das pessoas –, e aquilo com o que, efetivamente, o poeta se deparou, o
falante vislumbra uma grande distância.
Mas tudo não passa –
perceba lá o internauta – de honrada modéstia do poeta. Afinal, que grande vate
foi Nemésio, ele, como tantos outros, a reconhecer o quão efêmera é a volta que
damos ao mundo, como a “ramagem fremente” dos dedos impressa na terra, “estranho
fóssil” a sinalizar nossa breve presença por estas paragens do domínio “espaço x
tempo”.
J.A.R. – H.C.
Vitorino Nemésio
(1901-1978)
O Bicho Harmonioso
Eu gostava de ter um
alto destino de poeta,
Daqueles cuja
tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os
leem quando eles já são tão leves
Que passam a tarde
numa estrela,
A força do calor na
bica de uma fonte
E a noite no mar ou
no risco dos pirilampos.
Assim, gloriosos mas
sem porta a que se bata,
Abstratos mas vivos,
Rarefeitos mas com o hálito
nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços
das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas
grossas da chuva
E indispensável aos
heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco.
Ser a vida e não ter
já vida ‑ era um destino.
Depois, dar a minha
Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai, vendado de
terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,
Onde eu houvesse
estado, de uma sagração natural:
Não digo como as
Virgens Aparecidas,
Que tornam mudos e
radiosos os pastorinhos,
Mas como certo
orvalho de que me lembro, em pequeno,
Para lá da janela a
luz cortada por chuva,
E uma prima que amei,
a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.
Tudo isto, e vontade
de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de
mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer
do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num
negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de
desgosto,
Como as estrelas
encobertas,
Que, depois de girar
a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria
aquele poeta que não sou,
Feito graça e
memória,
Separado de mim e do
meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas
pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz
que se explora e ilumina.
Mas não. Do canto
necessário
Para me diluir em som
e no ar que o guardasse
(Como o nervo do
degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar
senão uma vaga nota,
E a noite faz muito
bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de
bicho harmonioso.
Deixarei, estampada
pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente
dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!
Boulogne-sur-Seine,
Páscoa de 1935.
Em: “O Bicho
Harmonioso” (1938)
Fusão Harmoniosa
(Michael Külbel: artista
alemão)
Referência:
NEMÉSIO, Vitorino. O
bicho harmonioso. In: __________. Antologia poética. Apresentação e
selecção de Vasco Graça Moura. 1. ed. Lisboa, PT: Edições Asa, abr. 2002. p.
33-34.
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