Recorrendo à figura
histórica de Napoleão Bonaparte (1769-1821), o falante empresta a voz ao famoso
líder militar e imperador francês, em arguta ponderação sobre aspectos de sua
biografia e identidade, de simples soldado a general, conflagrando quase um
continente inteiro ao assumir, em paralelo, o posto político maior da nação
europeia.
De massa de manobra,
para forças muito além de seu controle, a centro do poder e de resoluções com
interesses nem sempre congruentes; de um instrumento de batalha sob uma “ordem
fatal” proveniente de um lugar misterioso, por todos designado como “gênio” ou “desespero”,
a um César que se pretende “imperador dos reis”; segue o homem pelas frentes de
campanha, até encontrar o seu “Waterloo”, tornando-se, a partir de então, “prisioneiro
dos ingleses na ilha de Santa Helena”, num sofrimento a superar todas as glórias
de suas vitórias, de suas conquistas e poderes mundanos, de seu império. E, por
fim, a inexorabilidade da morte e do olvido.
J.A.R. – H.C.
Carlos Nejar
(n. 1939)
Napoleão Bonaparte
Fui Napoleão
Bonaparte: ator
perdido no guerreiro,
estrategista efêmero
de mortos que subiam
e desciam
na convulsão da
terra.
Fui ator, às vezes
general
na roda de batalhas,
o acampamento rude,
era
um soldado entre
outros.
Um soldado de ignotos
ritos, de uma ordem
fatal
que vinha do que os
homens
chamam gênio, ou
desespero
de ter a forma
humana,
embora um fogo o
aniquile
e seja o pensamento
frio
de ir engendrando
deuses
e batalhas.
Pode um ator e
personagem,
trocar em surdina
seus papéis
e continuar a cena?
Imperador
dos reis e
prisioneiro dos ingleses
nesta Ilha de Santa
Helena?
Uma agonia pertinaz
me açula,
uma agonia, esta
matilha.
Os mortos querem
matar os vivos.
Mas quanto custa
morrer.
Um furor de faca
sobre
o estômago, um repuxo
de lâmina cortando,
um repuxo de jorros.
Como se gotas de
veneno
se grudassem no
sangue.
E a febre borbulhante
da agonia, as ervas
negras.
A dor era maior que o
reino
que tivera ou a
vigília
dos tambores, ou Waterloo.
A dor de uma cama a
outra.
O quarto, mundo
submergindo.
De uma cama a outra.
E os lençóis não
murchavam
os quadrantes desta
morte
que me arqueava.
Quando a morte viu,
eu nela me deitava.
Principiei a dormir.
Com a minha cara.
E a máscara.
Napoleão em Santa
Helena
(František Xaver
Sandmann: artista franco-austríaco)
Referência:
NEJAR, Carlos.
Napoleão Bonaparte. In: __________. Antologia poética de Carlos Nejar.
Prefácio, organização e selecção de António Osório. 1. ed. Cascais, PT:
Pergaminho, 2003. p. 156-157.
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