Nitidamente instilado
de uma melancolia reptadora, este soneto de Quintana explora a ideia de como as
experiências da vida podem alterar o estado de ânimo de uma pessoa, bem assim
como, apesar de todas as adversidades, a sua luz interior – dir-se-ia melhor, a
resistência do espírito – e a sua própria essência são capazes de perdurar, mesmo
a despeito da morte iminente.
Desilusões, perdas, sofrimentos
marcam-nos a alma, roubando-nos o sorriso, quase uma parte de nossos
fundamentos, tornando-nos um “toco de vela, amarelada”, mas, seja como for, com
uma “luz sagrada”, recordatória da humana aptidão para enfrentar a escuridão
com firmeza e valentia, conduzindo à frente a tocha da espera por dias
melhores.
J.A.R. – H.C.
Mario Quintana
(1906-1994)
Soneto XVII
Na vez primeira em
que me assassinaram
Perdi um jeito de
sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez
que me mataram,
Foram levando
qualquer coisa minha...
E hoje, dos meus
cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que
não tem mais nada...
Arde um toco de vela,
amarelada...
Como único bem que me
ficou!
Vinde, corvos,
chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão,
avaramente adunca,
Ninguém há de
arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas
do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e
triste como um ai,
A luz de um morto não
se apaga nunca!
Em: “A Rua dos
Cataventos” (1940)
Reminiscência Arqueológica do ‘Ângelus’ de Millet
(Salvador Dalí:
pintor espanhol)
Referência:
QUINTANA, Mário.
Soneto XVII. In: __________. Poesia completa: em um volume. Organização,
preparação do texto, prefácio e notas de Tania Franco Carvalhal. Rio de
Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2006. p. 101. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série
Brasileira)
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