Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Tahar Ben Jelloun - Que meu povo me perdoe

Eis aqui uma espécie de chamado à ação e à preservação da identidade cultural, da memória de um povo, de sua história – muito provavelmente as do Marrocos, pátria-mãe do poeta –, ante a necessidade de não se esmorecer na luta, não se perder a esperança em meio aos desafios sociopolíticos, mantendo-se ardente o espírito no combate ao isolamento.

 

Nada de se render à amnésia e à manipulação das reminiscências, à brutalidade quotidiana, à opressão e ao desconsolo: é na adversidade que se concentra o potencial para a mudança e a instauração da justiça, elementos primazes de beleza e restauro, verdadeiros baluartes para dar voz às experiências silenciadas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Tahar Ben Jelloun

(n. 1944)

 

Que mon peuple me pardonne

 

Toi qui ne sais pas lire

tiens mes poèmes

tiens mes livres

fais-en un feu pour réchauffer tes solitudes

que chaque mot alimente ta braise

que chaque souffle dure dans le ciel qui s’ouvre

 

Toi qui ne sais pas écrire

que ton corps et ton sang me content l’histoire du pays

parle

 

Serait-ce illusion de l’arc-en-ciel

que d’être de toi

de ce corps qu’on mutile

 

Je lirai les livres à l’envers

pour mieux lire un champ de fleurs sur ton visage

 

Je parlerai la langue du bois et de la terre

pour entrer dans la foule qui se soulève

 

Je débarquerai dans les blessures de ta mémoire

et j’habiterai ton corps qui se tait

Nous dirons ensemble le printemps aux enfants des terrains vagues

Nous dirons le soleil moribond à l’astre qui se vide

Nous dirons changer la vie à la montagne anonyme la montagne qui avance

 

Pendant qu’on classes les affaires courantes

on danse sur le dos uniforme d’hommes et de femmes

on rit et mange le foie des mères en deuil

Nous retournerons la bête défigurée aux archives des ministères

 

L’histoire n’a plus l’intention de bouger

elle s’accroche aux fibres de la mort

et préside la séance d’ouverture à l’abattoir de la ville

 

Notre histoire est un territoire de plaies que ferme un printemps d’euphorie

 

Souviens-toi

on s’en allait dans les champs semer l’espoir

on retournait la ville comme la terre enceinte

on découvrait des arbres sauvages prêts à percer le ciel

et des milliers d’épaules volontaires pour porter ce pays au faite du soleil

on croyait à l’aurore diamantée

l’aube pointait à l’appel des enfants

la rue dansait sur nos bras

on oubliait que la lumière pouvait enfanter une âme étrange

on se soûlait au feu pour mieux enlacer le lustre du ciel

 

Et puis la ville et le ciel se sont décomposés

la rêve brisé coulait sa peine dans les ruelles désertes

 

Le peuple a ficelé l’espoir à l’attente

allonge les vendredis

boit le rouge

fume le kif

mange les vers de terre

et prend le soleil

 

les autres

mains et sexes corrompus

jouent notre mémoire au poker

 

notre mémoire se fane

notre mémoire sommeille

 

Peuple

ma tête est lourde

elle est charogne

elle pue le verbe

elle tombe

 

Je la donne à la vipère maudite

 

notre folie

notre colère

enlacées à la vipère maudite.

 

Área do Mercado em Marrakesh

(David Tanner: artista norte-americano)

 

Que meu povo me perdoe

 

Tu que não sabes ler

pega meus poemas

pega meus livros

faz deles uma fogueira para aquecer tuas solidões

que cada palavra alimente a tua brasa

que cada sopro se perpetue no céu que se abre

 

Tu que não sabes escrever

que teu corpo e teu sangue me contem a história do país

fala

 

Seria ilusão do arco-íris

ser apenas de ti

deste corpo mutilado

 

Eu lerei os livros ao contrário

para ler melhor um prado de flores sobre teu rosto

 

Eu falarei a língua do campo e da terra

para entrar na multidão que se rebela

 

Eu desembarcarei nas feridas da tua memória

e habitarei teu corpo que se cala

Nós anunciaremos juntos a primavera às crianças dos terrenos baldios

Nós anunciaremos o sol moribundo ao astro que se esvazia

Nós anunciaremos o mudar da vida à montanha anônima que avança

 

Enquanto eles despacham os assuntos corriqueiros

dançam sobre o dorso uniforme de homens e de mulheres

riem e comem o fígado das mães de luto

Devolveremos o bicho desfigurado aos arquivos dos ministérios

 

A história não tem mais intenção de se mover

ela se agarra às fibras da morte

e preside a sessão de abertura no abatedouro da cidade

 

Nossa história é um território de chagas que uma primavera

de euforia encerra

 

Lembra-te

íamos pelos campos semear a esperança

revolvíamos a cidade como a terra grávida

descobríamos árvores selvagens prontas para perfurar o céu

e milhares de ombros voluntários para levar esse país aos píncaros do sol

acreditávamos na aurora diamantina

a aurora despontava ao chamado das crianças

a rua dançava em nossos braços

esquecíamos que a luz podia gerar alma estranha

embriagávamo-nos ao fogo para melhor abraçar o brilho do céu

 

Em seguida a cidade e o céu se descompuseram

o sonho partido vertia seu desgosto nas ruelas desertas

 

O povo amarrou a esperança na espera

prolonga as sextas-feiras

bebe vinho

fuma kif

come vermes da terra

e pega o sol

 

Os outros

mãos e sexos corrompidos

apostam nossa memória no pôquer

 

nossa memória envelhece

nossa memória cochila

 

Povo

minha cabeça está pesada

ela é carniça

ela fede o verbo

ela cai

 

Eu a entrego à víbora maldita

 

nossa loucura

nossa cólera

abraçadas à víbora maldita.

 

Referência:

 

JELLOUN, Tahar Ben. Que mon peuple me pardonne / Que meu povo me perdoe. Tradução de Cláudia Falluh Balduino Ferreira. In: __________. As cicatrizes do Atlas. Seleção, tradução e introdução de Cláudia Falluh Balduino Ferreira. Brasília, DF: Editora da UnB, 2003. Em francês: p. 36, 38, 40 e 42; em português: p. 37, 39, 41 e 43. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)

 

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