A chegada de um novo
membro à família – no caso, uma irmãzinha – leva à necessidade de adaptações do
falante a novas realidades, alterando a sua percepção e comportamento, digo
melhor, à medida que cresceu e foi exposto às comoções da dinâmica familiar,
aprendeu ele a mentir – ou bem ocultando a verdade ou bem apresentando-a em uma
versão distorcida. “E isso... mudou tudo”!
Luta por direitos
trabalhistas, de um lado, e provável trabalho doméstico não remunerado, do
outro, configuram o contraste a compor a “mitologia privada do caos”, aditada pelos
volteios de um cão sempre a definhar: diria o Nelson Rodrigues que tal é a vida
como ela de fato é – e muitas das mentiras são o prato principal a se servir
num repasto literário ficcional!
J.A.R. – H.C.
Luís Filipe Parrado
(n. 1968)
Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.
Duas crianças
brincando com um cão
(Félicité Beaudin:
pintora francesa)
Referência:
PARRADO, Luís Filipe.
Teoria da narrativa familiar. Criatura, Lisboa (PT), Núcleo Autónomo
Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa & Associação Académica, n. 3, p.
119, abr. 2009.
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