Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Czesław Miłosz - Conjuro

O poeta, mediante um conjuro, faz a apologia da mente humana e de sua capacidade para explorar temas como a verdade, a justiça, a esperança e o poder para criar e transformar o mundo: bela e inamordaçável, ela é capaz de conceber ideias universais e distinguir o que não seja conforme à equidade e à fidedignidade dos fatos, ou ainda, à lógica dos argumentos.

 

Sem fazer distinção entre raças, classes ou nacionalidades, a razão é o vetor a orientar os administradores do patrimônio comum à humanidade, resgatando e preservando a clareza e a precisão das metas a alcançar, em meio ao caos das palavras corrompidas, pejadas de intolerância, xenofobia e preconceito.

 

Condenados à autodestruição estão todos os que vão de encontro a esses propósitos maiores perseguidos pela justa razão, ideais elevados aos quais se juntam a sabedoria e a poesia, tornando-os refratários à turbulência do mundo, chegando mesmo a transcender os nossos mundanos limites temporais.

 

J.A.R. – H.C.

 

Czesław Miłosz

(1911-2004)

 

Zaklęcie

 

Piękny jest ludzki rozum i niezwyciężony.

Ani krata, ni drut, ni oddanie książek na przemiał,

Ani wyrok banicji nie mogą nic przeciw niemu.

On ustanawia w języku powszechne idee

I prowadzi nam rękę, więc piszemy z wielkiej litery

Prawda i Sprawiedliwość, a z małej kłamstwo i krzywda.

On ponad to, co jest, wynosi, co być powinno,

Nieprzyjaciel rozpaczy, przyjaciel nadziei.

On nie zna Żyda ni Greka, niewolnika ni pana,

W zarząd oddając nam wspólne gospodarstwo świata.

On z plugawego zgiełku dręczonych wyrazów

Ocala zdania surowe i jasne.

On mówi nam, że wszystko jest ciągle nowe pod słońcem,

Otwiera dłoń zakrzepłą tego, co już było

Piękna i bardzo młoda jest Filo-Sofija

I sprzymierzona z nią poezja w służbie Dobrego.

Natura ledwo wczoraj święciła ich narodziny,

Wieść o tym górom przyniosły jednorożec i echo.

Sławna będzie ich przyjaźń, ich czas nie ma granic.

Ich wrogowie wydali siebie na zniszczenie.

 

Berkeley, 1968

 

A Razão Humana

(Ken Laidlaw: artista inglês)

 

Conjuro

 

Bela é a razão humana e invencível.

Nem grades, nem arame farpado, nem trituração de livros,

Nem a condenação ao exílio, nada podem contra ela.

Ela instala nas línguas ideias universais

E guia nossa mão, de sorte que escrevemos com maiúscula

Verdade e Justiça, e com minúscula mentira e iniquidade.

Acima do que é, ela ergue o que deveria ser,

Inimiga do desespero, amiga da esperança.

Ela não conhece judeu nem grego, servo ou senhor,

Confiando a nosso governo o ofício comum do mundo.

Da vil balbúrdia das palavras atormentadas

Ela salva as frases severas e claras.

Ela nos diz que tudo é sempre novo sob o sol,

Abre a mão petrificada do que já foi:

Bela e muito jovem é a Philo-Sophia

E a poesia, sua aliada a serviço do Bem.

A natureza ainda ontem festejou seu nascimento,

O licorne e o eco trouxeram a notícia às montanhas.

Gloriosa será esta amizade, seu tempo não tem fim.

Seus adversários fadaram-se à destruição.

 

Berkeley, 1968

 

Referência:

 

MIŁOSZ, Czesław. Zaklęcie / Conjuro. Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. In: __________. Não mais. Seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Edição bilíngue. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2001. Em polonês: p. 72; em português: p. 73. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)

domingo, 15 de setembro de 2024

Rita Dove - Adolescência – II

Em um cenário meio surrealista, sob uma atmosfera de mistério e de transformação, medo e fascínio, típica das incertezas que povoam a mente de uma adolescente, algo invulgar está a ponto de ocorrer: a falante submerge num mundo de fantasias, hesitando ante a pergunta que lhes direcionam os homens-foca, alusiva – aparentemente – à transição para a maturidade ou mesmo à expressão da sexualidade.

 

Os homens-foca, então, desaparecem em intrigantes trejeitos sensuais, deixando a adolescente vagamente atordoada, entre sensações que revelam o fim de toda pudicícia, muito embora ela não se mostre capaz de expressar ou compreender plenamente as experiências por que passa, bem assim a conturbação que, amiúde, as acompanha.

 

J.A.R. – H.C.

 

Rita Dove

(n. 1952)

 

Adolescence – II

 

Although it is night, I sit in the bathroom, waiting.

Sweat prickles behind my knees, the baby-breasts are alert.

Venetian blinds slice up the moon; the tiles quiver in pale strips.

 

Then they come, the three seal men with eyes as round

As dinner plates and eyelashes like sharpened tines.

They bring the scent of licorice. One sits in the washbowl,

 

One on the bathtub edge; one leans against the door.

“Can you feel it yet?” they whisper.

I don’t know what to say, again. They chuckle,

 

Patting their sleek bodies with their hands.

“Well, maybe next time.” And they rise,

Glittering like pools of ink under moonlight,

 

And vanish. I clutch at the ragged holes

They leave behind, here at the edge of darkness.

Night rests like a ball of fur on my tongue.

 

Jovem em seu banho

(Alphonse Roehn: pintor francês)

 

Adolescência – II

 

Embora seja noite, sento-me no banheiro, à espera.

O suor formiga-me atrás dos joelhos, os seios de bebê estão alertas.

As venezianas fatiam a lua; os ladrilhos tremem em franjas pálidas.

 

Logo chegam eles, os três homens-foca com olhos tão redondos

Como pratos rasos e pestanas feito pontas afiladas.

Exalam uma fragrância de alcaçuz. Um senta-se sobre o lavabo,

 

Outro na borda da banheira; o último encosta-se à porta.

“Já a consegues experimentar?”, sussurram.

Não sei o que dizer, outra vez. Eles riem,

 

Dando tapinhas em seus corpos esguios com as mãos.

“Bem, talvez da próxima vez.” E se levantam,

brilhando como poças de tinta ao clarão da lua,

 

E desaparecem. Agarro-me aos rasgos hirsutos

Que deixam para trás, aqui no limite da escuridão.

A noite repousa como um novelo de pelos em minha língua.

 

Referência:

 

DOVE, Rita. Adolescence – II. In: AXELROD, Steven Gould; ROMAN, Camille; TRAVISANO, Thomas (Eds.). The new anthology of american poetry. Vol. 3: Postmodernisms 1950 – Present. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2012. p. 437-438.

sábado, 14 de setembro de 2024

Mohammed Dib - Contraluz

Jogando com os polos do misterioso e do mundano, do espiritual e do terrenal, a voz lírica evoca, em meio aos vestígios que apreende à realidade, aquelas sensações arcanas e transmutadoras por trás das imagens de pássaros, de uma chama, do mar e de uma mulher, talvez projetadas na parede do quarto pelos reflexos do presumível lume de uma vela.

 

Perpassa o poema um certo matiz introspectivo ou espiritual, quase mórfico, que se difunde pelas metáforas empregadas – espontaneamente associáveis às ideias de imensidade e de transcendência –, ultimadas pelo regresso às instâncias do tangível, como se o falante, até então, estivesse a vogar nas asas da imaginação, numa espécie de prática meditativa que, ao fim e ao cabo, leva-o até um mar de tranquilidade e de quietude.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mohammed Dib

(1920-2003)

 

Contre-jour

 

Les oiseaux apparaissent,

S’allume une flamme

Et c’est la femme;

 

Sans nom ni liens ni voile,

Errant les yeux clos,

La femme couverte de la fraîcheur de la mer.

 

Mais brusquement les oiseaux réapparaissent

Et s’allonge cette flamme

Plus qu’entr’aperçue au fond de la chambre.

 

Et c’est la mer,

La mer aux bras endormants portant le soleil,

Ni orient ni nord, ni obstacle ni barre, la mer;

 

Rien que la mer ténébreuse et douce

Tombée des étoiles, témoin des mutilations du ciel,

Solitude, pressentiments, chuchotis,

 

Rien que la mer,

Les yeux éteints,

Sans vague ni vent ni voile.

 

Brusquement les oiseaux réapparaissent;

Et c’est la femme,

Ni étoile ni rêve, ni geyser ni roue, la femme.

 

Les oiseaux reviennent;

Et rien que la mer.

 

Mulher e pássaro ao luar

(Joan Miró: pintor espanhol)

 

Contraluz

 

As aves surgem,

Acendese uma chama

Eis a mulher.

 

Sem nomes nem laços, nem véu

Errando de olhos fechados

A mulher sob a frescura do mar.

 

Mas bruscamente voltam as aves

E alongase esta chama

Mais do que entreapercebida no fundo do quarto.

 

E é o mar

O mar de braços adormecidos transportando o sol,

Nem oriente nem norte, nem obstáculo nem barra, o mar.

 

Nada, a não ser o mar tenebroso e doce

Caído das estrelas, testemunha das mutilações do céu,

Solidão, pressentimentos, sussurros.

 

Nada a não ser o mar.

Os olhos extintos

Sem vaga, nem vento, nem vela.

 

Bruscamente de novo as aves,

E eis a mulher

Nem estrela nem sonho, nem géiser, nem roda, a mulher.

 

As aves voltam

E nada mais que o mar.

 

Referências:

 

Em Francês

 

DIB, Mohammed. Contre-jour. In: LÉVI-VALENSI, Jacqueline; BENCHEIKH, Jamel-Eddine (Éds.). Diwan algérien: la poésie algérienne d’expression française de 1945 à 1965. Alger (DZ): Société Nationale d’Édition et de Diffusion (SNED), 1967. p. 83.

 

Em Português

 

DIB, Mohammed. Contraluz. Tradução de Adalberto Alves. In: MONTEIRO, Manuel Hermínio (Direcção editorial); CORREIA, Manuela (Organização). Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro. Vários poetas e tradutores. 3. ed. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 2001. p. 15771578.