Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Mary Oliver - Primavera

Tomando uma ursa negra – seus movimentos, suas ações e interações instintivas com os elementos do espaço físico ao redor – como símbolo da natureza, a poetisa motiva-nos a focarmos na importância de amar e de contemplar, com um olhar mais atento, tudo o que se encontra em nosso entorno.

 

Afinal, nada há de mais gratuito no mundo do que a beleza, em suas múltiplas formas, e as maravilhas que nos são obsequiadas pela natureza, servindo-nos como inspiração para o desencadeamento de nossas próprias ideias, criações, realizações: tragamos sempre a arder o espírito de vitalidade e de renovação que o marco da primavera nos incita a emular!

 

J.A.R. – H.C.

 

Mary Oliver

(1935-2019)

 

Spring

 

Somewhere

a black bear

has just risen from sleep

and is staring

 

down the mountain.

All night

in the brisk and shallow restlessness

of early spring

 

I think of her,

her four black fists

flicking the gravel,

her tongue

 

like a red fire

touching the grass,

the cold water.

There is only one question:

 

how to love this world.

I think of her

rising

like a black and leafy ledge

 

to sharpen her claws against

the silence

of the trees.

Whatever else

 

my life is

with its poems

and its music

and its glass cities,

 

it is also this dazzling darkness

coming

down the mountain,

breathing and tasting;

 

all day I think of her –

her white teeth,

her wordlessness,

her perfect love.

 

Na Primavera

(Marion Rose: pintora canadense)

 

Primavera

 

Em algum lugar,

uma ursa negra

acaba de despertar

e lança um olhar atento

 

sobre a montanha.

Durante toda a noite,

sob a vívida e breve agitação

do início da primavera,

 

eu penso nela,

em suas quatro patas negras

revirando o cascalho,

na língua

 

como uma rúbida chama

a tocar a relva,

a água fria.

Só há uma pergunta:

 

como amar este mundo?

Penso nela

a erguer-se,

como um flanco escuro e frondoso,

 

para afiar suas garras contra

o silêncio

das árvores.

O que quer que seja,

 

minha vida,

com seus poemas,

sua música

e suas cidades de vidro,

 

também é esse negror deslumbrante

que desce

a montanha,

respirando e se deliciando;

 

penso nela o dia todo –

em seus dentes brancos,

em sua carência de palavras,

em seu amor perfeito.

 

Referência:

 

OLEVER, Mary. Spring. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 24-25.

domingo, 29 de setembro de 2024

Mario Quintana - Soneto XVII

Nitidamente instilado de uma melancolia reptadora, este soneto de Quintana explora a ideia de como as experiências da vida podem alterar o estado de ânimo de uma pessoa, bem assim como, apesar de todas as adversidades, a sua luz interior – dir-se-ia melhor, a resistência do espírito – e a sua própria essência são capazes de perdurar, mesmo a despeito da morte iminente.

 

Desilusões, perdas, sofrimentos marcam-nos a alma, roubando-nos o sorriso, quase uma parte de nossos fundamentos, tornando-nos um “toco de vela, amarelada”, mas, seja como for, com uma “luz sagrada”, recordatória da humana aptidão para enfrentar a escuridão com firmeza e valentia, conduzindo à frente a tocha da espera por dias melhores.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Quintana

(1906-1994)

 

Soneto XVII

 

Na vez primeira em que me assassinaram

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...

Depois, de cada vez que me mataram,

Foram levando qualquer coisa minha...

 

E hoje, dos meus cadáveres eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada...

Arde um toco de vela, amarelada...

Como único bem que me ficou!

 

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!

Ah! desta mão, avaramente adunca,

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

 

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!

Que a luz, trêmula e triste como um ai,

A luz de um morto não se apaga nunca!

 

Em: “A Rua dos Cataventos” (1940)

 

Reminiscência Arqueológica do Ângelus de Millet

(Salvador Dalí: pintor espanhol)

 

Referência:

 

QUINTANA, Mário. Soneto XVII. In: __________. Poesia completa: em um volume. Organização, preparação do texto, prefácio e notas de Tania Franco Carvalhal. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2006. p. 101. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Brasileira)

sábado, 28 de setembro de 2024

Rumi - Quietude

O poeta sufi nos convida a explorar a transformação interna que o verdadeiro amor é capaz de nos trazer, deixando para trás a antiga forma de ser e de pensar, “morrendo” metaforicamente no curso dessa mudança e evolução pessoal, para que, em síntese, possamos abandonar as limitações autoimpostas e sair de nossas zonas de conforto, abraçando o desconhecido.

 

Converter-se no céu é um projeto a implicar a morte simbólica do ego, uma serena expansão da consciência, afastando todas as preocupações e distrações mundanas, com o objetivo de nos liberar das barreiras que nos impedem de ser autênticos – medos, preconceitos, expectativas sociais ou que tais – e experimentarmos a plenitude da vida, num exercício inefável que transcende toda linguagem.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jalaluddin Rumi

(1207-1273)

 

Quietness

 

Inside this new love, die.

Your way begins on the other side.

Become the sky.

Take an axe to the prison wall.

Escape.

Walk out like someone suddenly born into color.

Do it now.

You’re covered with thick cloud.

Slide out the side. Die,

and be quiet, Quietness is the surest sign

that youVe died.

Your old life was a frantic running

from silence.

 

The speechless full moon

comes out now.

 

Quietude

(Jay Massey: pintor norte-americano)

 

Quietude

 

Dentro deste novo amor, morra.

Seu caminho inicia-se do outro lado.

Converta-se no céu.

Golpeie com uma acha os muros da prisão.

Escape.

Saia como alguém que, de repente, nasceu

para imergir na cor.

Faça-o agora.

Você está coberto por uma nuvem espessa.

Deslize para fora. Morra

e mantenha-se quieto, a quietude é o sinal

mais seguro

de que você morreu.

Sua antiga vida era uma fuga frenética

do silêncio.

 

A silente lua cheia

há de aparecer agora.

 

Referência:

 

RUMI, Jalaluddin. Quietness. In: __________. The essential Rumi. Translations from persian by Coleman Barks with John Moyne, A. J. Arberry and Reynold Nicholson. Edison, NJ: Castle Books, 1997. p. 22.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Allen Shawn - Sobre a indispensabilidade na variedade de expressões e de modos humanos

O autor celebra a diversidade humana, não só a de ordem natural – como a de sexo ou de outros atributos corporais –, mas, singularmente, a que se costuma caracterizar como cultural, a traduzir toda a ampla complexidade de formas de vida, os mais distintos cuidados, toda a gente que desempenha um papel vital para a construção de um quotidiano sustentável neste mundo multíplice.

 

Com efeito, nem só de pessoas com poder de liderança militar ou habilidades artísticas vive a humanidade – nem só de cientistas, como também de filósofos e poetas; nem só dos que reprisam, mas também dos criativos e dos que inovam: é a variedade de habilidades, de personalidades e de enfoques o que enriquece a sociedade e a torna equilibrada e funcional.

 

Perceba-se que o próprio autor do pensamento – o norte-americano Allen Evan Shawn – atua em diferentes ofícios, obrando como compositor, pianista, educador e, claro está, escritor: notem-se as suas alusões a certa passagem contida no volume I da série “Em busca do tempo perdido”, nomeadamente, “No caminho de Swann”, de Marcel Proust (1871-1922) – ou seja, o menino à espera do beijo noturno da mãe –, e aos muitos e breves poemas orientais que enaltecem as belíssimas temporadas anuais de floração das cerejeiras, sobretudo no Japão.

 

J.A.R. – H.C.

 

Allen Shawn

(n. 1948)

 

So multifarious is existence that infinite varieties of attention are required to build a sustainable life within it. Those who particularly notice what is worrisome or anticipate – even to their detriment – what will be painful may be just those who notice nuances of life others might neglect. A species in which everyone was General Patton would not succeed, any more than would a race in which everyone was Vincent van Gogh. I prefer to think that the planet needs athletes, philosophers, sex symbols, painters, scientists; it needs the warmhearted, the hardhearted, the coldhearted, and the weakhearted. It needs those who can devote their lives to studying how many droplets of water are secreted by the salivary glands of dogs under which circumstances, and it needs those who can capture the passing impression of cherry blossoms in a fourteen-syllable poem or devote twenty-five pages to the dissection of a small boy’s feelings as he lies in bed in the dark waiting for his mother to kiss him good night. It needs people who can design air conditioners, and it needs people who can inspire joy.

 

Avenida das Cerejeiras

(Yoshida Hiroshi: artista japonês)

 

Tão multifacetada é a existência que são necessárias infinitas variedades de atenção para se construir uma vida sustentável dentro dela. Aqueles que se fixam particularmente no que é preocupante ou antecipam – mesmo em seu detrimento – o que haverá de ser doloroso podem ser, precisamente, os que notam nas nuances da vida o que outros poderiam negligenciar. Uma espécie em que todos fossem o General Patton não seria bem-sucedida, não mais do que uma raça em que todos fossem Vincent van Gogh. Prefiro pensar que o planeta necessita de desportistas, filósofos, símbolos sexuais, pintores, cientistas; necessita de pessoas com o coração compassivo, com o coração austero, com o coração frio, bem assim dos que têm o coração não tão resoluto. Necessita daqueles que possam dedicar suas vidas a estudar quantas gotas de água são secretadas pelas glândulas salivares dos cães em determinadas circunstâncias, e necessita também daqueles que são capazes de capturar a impressão passageira das flores de cerejeira em um poema de quatorze sílabas ou dedicar vinte e cinco páginas à dissecação dos sentimentos de um garoto deitado na cama, no escuro, à espera de um beijo de boa-noite da mãe. Necessita, em suma, tanto de pessoas que sejam capazes de projetar condicionadores de ar, quanto daquelas que têm o poder de inspirar alegria.

 

Referência:

 

SHAWN, Allen. Wish I could be there: notes from a phobic life. New York: Penguin, 2007. p. 249-250.