Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Thiago de Mello - Tradução, verso e música

Dedicado por Mello a outro grande poeta e tradutor – José Paulo Paes –, a quem se dirige como um “mestre do ofício, poeta de minha predileção” (NERUDA, 1998, p. 10), este poema tem por mote a complexidade e os desafios da tradução poética, pois que explora a relação entre a linguagem, a música e a capacidade de transmitir sentimentos e ideias por meio das palavras.

 

Mello enfatiza, a propósito, a peculiaridade de ver os seus próprios versos traduzidos a um outro idioma por grandes poetas, como Mario Benedetti e Pablo Neruda, configurando, desse modo, presumíveis ajustes de comunhão e de troca de ideias entre os vates, no curso dos quais os versos de um passam a ressoar nas palavras vertidas por outro, muitas vezes a um páramo de beleza superior ao das linhas originais, pois, quando o tradutor é um poeta, detém os recursos para transcender a simples transmissão de ideias, soerguendo a poesia a uma forma superior de expressão artística.

 

J.A.R. – H.C.

 

Thiago de Mello

(1926-2022)

 

Tradução, verso e música

 

A José Paulo Paes

 

Me assombro, sempre que vejo

(mas será que vejo mesmo?)

meu coração traduzido

para o latejar de línguas

que em minha boca não cabem

e meus olhos não decifram.

 

Se meus olhos não decifram,

sabe o ouvido distinguir

entre os versos que se vão

viajando pela música

de outros idiomas, a mesma

canção de esperança que arde

no sonho de todo sangue.

Distingo bem claramente

na boca de seus fonemas

a eterna beleza humana

do sonho que move o mundo,

do amor que acende as estrelas.

 

Leio versos que escrevi

impressos em espanhol:

é um defunto que faz ponderações

aos que lhe fazem velório.

As ponderações são minhas,

mas o defunto está falando

é pela boca do Mario Benedetti.

A minha pantera azul não me pertence mais,

já é de Enrique Lihn,

principalmente quando lhe descobre

as vertentes laterais das coxas.

 

É minha a notícia que dei da manhã,

céu derramado, cristal de claridão.

Mas já é de Pablo Neruda,

poeticamente dele,

a manhã a que eu juro que vi:

“Mañana es cielo vertido,

claridad de claridade”.

 

A ideia ou, como diz o povo,

o que a gente quer dizer,

quando o tradutor padece,

fica igualzinha. Mas a poesia,

quando o tradutor é poeta,

pode até ficar mais bela.

A poesia não faz cama para a ideia,

não sai para dançar porque ela chama.

A Poesia está no verbo que era verbo

e continua a ser verbo desde o Princípio.

A Poesia é a palavra e a sua música,

da qual se ergue o poder de uma alegria

que não se acaba nunca – e é só palavra.

 

Composição 8

(Wassily Kandinsky: artista russo)

 

Referência:

 

MELLO, Thiago de. Tradução, verso e música. In: NERUDA, Pablo. Cadernos de Temuco: poesia (1919-1920). Tradução e abertura de Thiago de Mello. Edição e prólogo de Víctor Farías. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1998. p. 11-12.

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