Dedicado por Mello a
outro grande poeta e tradutor – José Paulo Paes –, a quem se dirige como um “mestre
do ofício, poeta de minha predileção” (NERUDA, 1998, p. 10), este poema tem por
mote a complexidade e os desafios da tradução poética, pois que explora a
relação entre a linguagem, a música e a capacidade de transmitir sentimentos e
ideias por meio das palavras.
Mello enfatiza, a propósito,
a peculiaridade de ver os seus próprios versos traduzidos a um outro idioma por
grandes poetas, como Mario Benedetti e Pablo Neruda, configurando, desse modo,
presumíveis ajustes de comunhão e de troca de ideias entre os vates, no curso dos
quais os versos de um passam a ressoar nas palavras vertidas por outro, muitas
vezes a um páramo de beleza superior ao das linhas originais, pois, quando o
tradutor é um poeta, detém os recursos para transcender a simples transmissão
de ideias, soerguendo a poesia a uma forma superior de expressão artística.
J.A.R. – H.C.
Thiago de Mello
(1926-2022)
Tradução, verso e
música
A José Paulo Paes
Me assombro, sempre
que vejo
(mas será que vejo
mesmo?)
meu coração traduzido
para o latejar de
línguas
que em minha boca não
cabem
e meus olhos não
decifram.
Se meus olhos não
decifram,
sabe o ouvido distinguir
entre os versos que
se vão
viajando pela música
de outros idiomas, a
mesma
canção de esperança
que arde
no sonho de todo
sangue.
Distingo bem
claramente
na boca de seus
fonemas
a eterna beleza
humana
do sonho que move o
mundo,
do amor que acende as
estrelas.
Leio versos que
escrevi
impressos em
espanhol:
é um defunto que faz
ponderações
aos que lhe fazem
velório.
As ponderações são
minhas,
mas o defunto está
falando
é pela boca do Mario
Benedetti.
A minha pantera azul
não me pertence mais,
já é de Enrique Lihn,
principalmente quando
lhe descobre
as vertentes laterais
das coxas.
É minha a notícia que
dei da manhã,
céu derramado,
cristal de claridão.
Mas já é de Pablo
Neruda,
poeticamente dele,
a manhã a que eu juro
que vi:
“Mañana es cielo
vertido,
claridad de claridade”.
A ideia ou, como diz
o povo,
o que a gente quer
dizer,
quando o tradutor
padece,
fica igualzinha. Mas
a poesia,
quando o tradutor é
poeta,
pode até ficar mais
bela.
A poesia não faz cama
para a ideia,
não sai para dançar
porque ela chama.
A Poesia está no
verbo que era verbo
e continua a ser
verbo desde o Princípio.
A Poesia é a palavra
e a sua música,
da qual se ergue o
poder de uma alegria
que não se acaba
nunca – e é só palavra.
Composição 8
(Wassily Kandinsky:
artista russo)
Referência:
MELLO, Thiago de.
Tradução, verso e música. In: NERUDA, Pablo. Cadernos de Temuco: poesia
(1919-1920). Tradução e abertura de Thiago de Mello. Edição e prólogo de Víctor
Farías. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1998. p. 11-12.
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