Numa sucessão de momentos
preciosos e efêmeros transcorre a vida, dia após dia, num ciclo interminável,
cada dia um reinício, uma nova oportunidade para experiências e lucubrações,
como se uma “anáfora” fosse – essa homônima figura de linguagem a consistir
numa repetição de palavras ou de expressões no início de versos ou de estrofes,
para enfatizar o termo que se repete.
E o que se repete vem
a modo de um ritual, com certo sentido devocional, numa sequência de eventos radiante,
especular, sublime, e, ao mesmo tempo, tão terrena quanto a lida humana, as
tramas da vida em que enleado o homem, nefastamente afadigado, além de que
atormentado pelo peso de suas memórias e sujeito aos caprichos do
tempo e das circunstâncias.
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
Anaphora
in memory of Marjorie
Carr Stevens
Each day with so much
ceremony
begins, with birds,
with bells,
with whistles from a
factory;
such white-gold skies
our eyes
first open on, such
brilliant walls
that for a moment we
wonder
“Where is the music
coming from, the energy?
The day was meant for
what ineffable creature
we must have missed?”
Oh promptly he
appears and takes his
earthly nature
instantly, instantly
falls
victim of long
intrigue,
assuming memory and
mortal
mortal fatigue.
More slowly falling
into sight
and showering into
stippled faces,
darkening, condensing
all his light;
in spite of all the
dreaming
squandered upon him
with that look,
suffers our uses and
abuses,
sinks through the
drift of bodies,
sinks through the
drift of classes
to evening to the
beggar in the park
who, weary, without
lamp or book
prepares stupendous
studies:
the fiery event
of every day in
endless
endless assent.
In: “North & South”
(1946)
O amanhecer a leste
(Caspar David
Friedrich: artista alemão)
Anáfora
in memoriam de
Marjorie Carr Stevens
Cada dia,
cerimonioso,
começa com pássaros,
e fábricas
a apitar,
estrepitosas;
diante de céus aurialvos
tão claros nossos
olhos se abrem,
e por um instante
perguntamos:
“De onde esta força,
esta melodia?
Para qual inefável
criatura
que não vimos, foi
feito este dia?”
Logo, logo ela surge,
e assume
sua natureza terrena
e cai vítima da intriga,
sob o ônus da
memória,
da mortal, mortal
fadiga.
Mais lentamente,
aparecem
os rostos
sarapintados,
condensam sua luz, e
a escurecem;
apesar de tantos
sonhos
gastos nela em tal
olhar,
atura nosso uso e
abuso,
mergulha no fluxo de
corpos,
mergulha no fluxo de
classes
até chegar ao mendigo
exausto
sem livro, sem luz,
no lusco-fusco,
imerso em estupendos
estudos:
este incandescente
evento
de cada dia em
constante
constante
consentimento.
Em: “Norte & Sul”
(1946)
Referência:
BISHOP, Elizabeth.
Anaphora / Anáfora. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas
escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de
Paulo Henriques Britto. 1. ed., 2. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012.
Em inglês: p. 160; em português: p. 161.
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