Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 23 de julho de 2024

Elizabeth Bishop - Anáfora

Numa sucessão de momentos preciosos e efêmeros transcorre a vida, dia após dia, num ciclo interminável, cada dia um reinício, uma nova oportunidade para experiências e lucubrações, como se uma “anáfora” fosse – essa homônima figura de linguagem a consistir numa repetição de palavras ou de expressões no início de versos ou de estrofes, para enfatizar o termo que se repete.

 

E o que se repete vem a modo de um ritual, com certo sentido devocional, numa sequência de eventos radiante, especular, sublime, e, ao mesmo tempo, tão terrena quanto a lida humana, as tramas da vida em que enleado o homem, nefastamente afadigado, além de que atormentado pelo peso de suas memórias e sujeito aos caprichos do tempo e das circunstâncias.

 

J.A.R. – H.C.

 

Elizabeth Bishop

(1911-1979)

 

Anaphora

 

in memory of Marjorie Carr Stevens

 

Each day with so much ceremony

begins, with birds, with bells,

with whistles from a factory;

such white-gold skies our eyes

first open on, such brilliant walls

that for a moment we wonder

“Where is the music coming from, the energy?

The day was meant for what ineffable creature

we must have missed?” Oh promptly he

appears and takes his earthly nature

instantly, instantly falls

victim of long intrigue,

assuming memory and mortal

mortal fatigue.

 

More slowly falling into sight

and showering into stippled faces,

darkening, condensing all his light;

in spite of all the dreaming

squandered upon him with that look,

suffers our uses and abuses,

sinks through the drift of bodies,

sinks through the drift of classes

to evening to the beggar in the park

who, weary, without lamp or book

prepares stupendous studies:

the fiery event

of every day in endless

endless assent.

 

In: “North & South” (1946)

 

O amanhecer a leste

(Caspar David Friedrich: artista alemão)

 

Anáfora

 

in memoriam de Marjorie Carr Stevens

 

Cada dia, cerimonioso,

começa com pássaros, e fábricas

a apitar, estrepitosas;

diante de céus aurialvos

tão claros nossos olhos se abrem,

e por um instante perguntamos:

“De onde esta força, esta melodia?

Para qual inefável criatura

que não vimos, foi feito este dia?”

Logo, logo ela surge, e assume

sua natureza terrena

e cai vítima da intriga,

sob o ônus da memória,

da mortal, mortal fadiga.

 

Mais lentamente, aparecem

os rostos sarapintados,

condensam sua luz, e a escurecem;

apesar de tantos sonhos

gastos nela em tal olhar,

atura nosso uso e abuso,

mergulha no fluxo de corpos,

mergulha no fluxo de classes

até chegar ao mendigo exausto

sem livro, sem luz, no lusco-fusco,

imerso em estupendos estudos:

este incandescente evento

de cada dia em constante

constante consentimento.

 

Em: “Norte & Sul” (1946)

 

Referência:

 

BISHOP, Elizabeth. Anaphora / Anáfora. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 1. ed., 2. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 160; em português: p. 161.

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