Águas paradas num lago brumoso são a metáfora perfeita para a estagnação
e a carência de vitalidade, de movimento, de luz: há nestes versos um quê
alusivo à escassez de inspiração para criar ou para suscitar um discurso com
sentidos, com significados, como se a própria linguagem estivesse
aprisionada e inerte – ela que outrora denotara todo um vasto território de ardentes
emoções, de paixões intensas, mas que agora não logra romper as barreiras do
silêncio.
As folhas amarelas e
desbotadas, assim como os caules rígidos e flutuantes, indicam os impasses em
relação aos requisitos de renovação, de crescimento, de incremento nos frutos por
vir, em outras palavras, um sentimento de nostalgia e de perda perpassa as
estâncias, despertando a ideia de que o poeta se reclama em relação à fortaleza
necessária para erradicar tal estado de “secura”, em suma, para fazer brotar fartas
espigas onde, por ora, elas grassam mirradas e ressequidas.
J.A.R. – H.C.
António Salvado
(1936-2023)
Secura
Água estagnada no
brumoso lago
sem qualquer espera
de ofegante brisa,
com folhas
amarelas desbotadas,
pequenos caules a
boiarem hirtos.
Nela jamais a luz
há-de brilhar,
nenhuma estrela aí
há-de fremir:
verbos saídos fora da
gramática,
sons apagados a negar
sentidos.
E no entanto sobre si
moraram
olhos ardidos de leal
queimor
e vogais consoantes de palavras
silenciadas como um
tronco morto.
Lago sob brumas
(Jessica Davidson:
pintora australiana)
Referência:
SALVADO, António. Secura. In: __________. Afloramentos. 1. ed. Castelo Branco, PT: Estudos de Castelo Branco, 2007. p. 12.
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