Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Nikolai Nekrássov - Atendendo aos horrores...

Ao mesmo tempo que deplora as terríveis consequências dos conflitos bélicos, o falante revela a sua especial compaixão para com as mães que perdem os seus filhos nos campos de batalha: seriam elas como que ramos de salgueiros fletidos, enlutadas e incapazes de se erguerem para o restauro do prumo, depois de assoladas pela perda daquilo que entendem ser o valor maior de suas vidas.

 

Perceba-se que o poeta retrata de um modo particular a figura materna à luz de um cenário de guerra, não exatamente no mesmo nível que em relação às esposas e amigo(a)s das vítimas, considerando que estes podem obter consolo junto aos que lhes são próximos e, com algum tempo, logo contornar as desventuradas memórias, levando à frente, quase sem abalos, as suas respectivas lidas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nikolai Nekrássov

(1821-1878)

 

Внимая ужасам войны

 

Внимая ужасам войны,

При каждой новой жертве боя

Мне жаль не друга, не жены,

Мне жаль не самого героя

Увы! утешится жена,

И друга лучший друг забудет;

Но где-то есть душа одна

Она до гроба помнить будет!

Средь лицемерных наших дел

И всякой пошлости и прозы

Одни я в мир подсмотрел

Святые, искренние слезы

То слезы бедных матерей!

Им не забыть своих детей,

Погибших на кровавой ниве,

Как не поднять плакучей иве

Своих поникнувших ветвей

 

(1855 или 1856)

 

Os horrores da guerra

(Peter Paul Rubens: pintor flamengo)

 

Atendendo aos horrores...

 

Atendendo aos horrores da guerra,

Ante cada nova vítima da luta,

Comovo-me não pelos amigos, nem pela esposa,

Apiedo-me não pelo próprio herói...

Que nada! Há de se confortar a esposa,

O melhor amigo, o amigo esquecerá;

Mas em algum lugar existe uma alma –

Esta há de se lembrar até o túmulo.

Em meio à hipocrisia de nossos atos,

de toda vulgaridade, da prosa...

As únicas lágrimas sinceras,

Santas, que encontrei pelo mundo,

Foram lágrimas das infortunadas mães!

Estas são incapazes de esquecer os filhos

Mortos em campo de sangue,

Assim como o lamuriante salgueiro

é incapaz de erguer seus ramos recurvados.

 

(1855 ou 1856)

 

Referência:

 

NEKRÁSSOV, Nikolai. Внимая ужасам войны / Atendendo aos horrores... Tradução de Irene Calaça. (n.t.) Revista Nota do Tradutor, n. 12, v. 1, jun. 2016; em russo: p. 104; em português: p. 115. Disponível neste endereço. Acesso em: 27 jul. 2024.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Affonso Romano de Sant’Anna - Catedral de livros

A Catedral de Colônia, “exemplo da resistência humana” frente às avassaladoras contingências da História, serve ao poeta e escritor mineiro como filão desencadeador de uma prodigiosa recolha de poemas, de onde transcrevo o que vem a seguir, uma espécie de encômio à grande Literatura e suas consagradas personagens, cumprindo-se consignar, ademais, que a obra em referência foi redigida por Romano quando residia em Colônia (DE) e lecionava na Universidade local, à época da ditadura militar em Pindorama.

 

O templo se converte, assim, num lugar para onde convergem as ideias e a imaginação, as criações em suma, de poetas e escritores: uma longa e ininterrupta narrativa do que se passa em nossas mentes, a fazer correr um rio impetuoso, repleto de todos os sentidos atribuíveis à singela existência humana, enquanto jornada perscrutadora pelas sendas da beleza e da verdade.

 

J.A.R. – H.C.

 

Affonso Romano de Sant’Anna

(n. 1937)

 

Catedral de livros

 

A Catedral de Colônia

mais que cordel nordestino

cantoria à beira Reno,

é uma pedra-poema

onde o poeta precário

verte o seu desatino

e seu furor literário.

A Catedral de Colônia

é o livro branco onde escrevo

tudo que amo e perco,

tudo que ensino e esqueço.

 

– Por aqui passou Cervantes no seu louco Rocinonte?

– Daqui se viu Camões perdendo Dinamene

e salvando a nado seu poema no Indico Oceano?

 

– Por aqui sorriu Voltaire, enquanto não brigou

com Frederico, o Grande, por causa de um chocolate

e do salário para a amante?

 

Mas que pedra mais completa

desta vez, enfim, botaram

no caminho do poeta.

 

São as Tristezas de Werter?

O dragão de Sigfried?

O Ouro do Reno velho?

A eterna culpa de Fausto?

O pai fantasma de Hamlet?

Édipo a sós com a esfinge?

Corcunda de Notre Dame?

A Volta de Monte Cristo?

Jogou-se daí Ismália?

Aí sonhou Julieta?

Matou-se aí Karenina?

Aí se afogou Ofélia?

Enlouqueceu Margarida?

Ou se aviltou Bovary?

 

É o Conselheiro em Canudos?

Um Quixote magro e ossudo?

A barata e o pai de Kafka?

O Som e a Fúria de Faulkner?

O louco Raskolnikov?

O Tambor de Günter Grass?

Montanha de Thomas Mann?

O doido manso de Gogol?

A guerra sem paz de Tolstoi?

 

Aqui se poderiam abrigar os eróticos consortes do Decameron

durante a peste que atacou a aldeia e os fortes. Aqui

se poderia armar o leito da arte amatória

oriental-medieval

e por mil dias, por mil noites, com Scheherazade

nessa alcova de pedra, resistir

 contando estórias.

 

A Catedral dos Livros

(Gregg Chadwick: artista norte-americano)

 

Referência:

 

SANT’ANNA, Affonso Romano. Catedral de livros. In: __________. A catedral de Colônia e outros poemas. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1985. p. 147-149.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

A. R. Ammons - Hino

Tem-se aqui o falante, numa inconteste dicção científica, a perscrutar as forças da natureza – das menores manifestações da matéria à grandiosidade do cosmos, dir-se-ia melhor, das coisas que os humanos nem sempre podem ver a outras tantas ostensivamente conspícuas –, todas a sugerirem, presume-se, a presença da figura tradicional de Deus por trás da criação, muito embora não explicitamente mencionada nos versos, senão apenas aventada pelo emprego sequenciado da anáfora “se te encontrar”.

 

Algumas linhas chegam a evocar determinadas imagens do taoísmo, como as que contrapõem as energias do yin e do yang ou, mais amplamente, as inúmeras dicotomias que se nos apresentam neste mundo de aparências, v.g., dentro/fora, completo/segmentário, luz/escuridão.

 

No domínio do que estaria por trás da reverente elocução do poeta, os versos talvez insinuem algo que, postado o falante ainda deste lado do oceano da vida, poderia se encontrar já na outra margem, dada a ambivalência incorporada às últimas linhas do poema, permeadas pela ideia de totalidade como expressão síncrona do vasto espírito de que se reveste o universo.

 

J.A.R. – H.C.

 

A. R. Ammons

(1926-2001)

 

Hymn

 

I know if I find you I will have to leave the earth

and go on out

over the sea marshes and the brant in bays

and over the hills of tall hickory

and over the crater lakes and canyons

and on up through the spheres of diminishing air

past the blackset noctilucent clouds

where one wants to stop and look

way past all the light diffusions and bombardments

up farther than the loss of sight

into the unseasonal undifferentiated empty stark

 

And I know if I find you I will have to stay with the earth

inspecting with thin tools and ground eyes

trusting the microvilli sporangia and simplest

coelenterates

and praying for a nerve cell

with all the soul of my chemical reactions

and going right on down where the eye sees only traces

 

You are everywhere partial and entire

You are on the inside of everything and on the outside

 

I walk down the path down the hill where the sweetgum

has begun to ooze spring sap at the cut

and I see how the bark cracks and winds like no other bark

chasmal to my ant-soul running up and down

and if I find you I must go out deep into your

far resolutions

and if I find you I must stay here with the separate leaves

 

A caminho da eternidade

(Bruce Rolff: artista norte-americano)

 

Hino

 

Sei que se te encontrar terei de deixar a terra

e seguir adiante

sobre os pântanos marinhos e as bernacas nas baías

e sobre as colinas de altas nogueiras

e sobre os lagos de crateras e desfiladeiros

e mais ao alto através dos estratos de ar rarefeito

para além das negras e noctilucentes nuvens

onde muitos cogitam em chegar para avistar

mais ao largo de todas as irrupções e difusões de luz

até mais longe do que o ponto onde há perda de visibilidade

em meio à perdurável e indiferenciada aridez do vazio

 

E sei que se te encontrar terei que manter-me colado à terra

inspecionando-a com aguçado instrumental e olhos telúricos

fiando-me nas microvilosidades, nos esporângios e

nos mais simples celenterados

e rogando por uma célula nervosa

com toda a alma de minhas reações químicas

e indo até bem fundo onde os olhos só enxergam vestígios

 

Estás em toda parte fragmentário e inteiro

Estás no interior e no exterior de tudo

 

Caminho pela trilha descendo a colina, onde o liquidâmbar

começou a ressumar pelo corte a seiva primaveril

e vejo como a sua tona racha e se retorce como nenhuma outra tona

abismo para minh’alma de formiga debatendo-se de cima a baixo

e se te encontrar tenho de ir até o cerne de tuas

longínquas resoluções

e se te encontrar tenho de manter-me aqui com as folhas desprendidas

 

Referência:

 

AMMONS, A. R. Hymn. In: HOPLER, Jay; JOHNSON, Kimberly (Eds.). Before the door of God: an anthology of devotional poetry. New Haven, CT: Yale University Press, 2013. p. 323-324.