Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Octavio Paz - A Poesia

A retratarem a intensa relação entre o poeta e a poesia, estas caudalosas linhas descrevem o falante a mergulhar na voragem transformadora do experimento poético e nas intensas emoções que ele evoca: surge a poesia, no dizer do autor, de seus recessos mais profundos, do centro inominável do seu ser – como um “exército” ou uma “maré”.

 

Nesse exercício de imaginação, o poeta reconhece no mundo as suas diferenças e semelhanças, suas oposições e afinidades, suas tensões de destruição e de criação. E, sob tal contexto, toda a poesia que dele se extraia tende a suscitar uma angústia sem fim, transformando tudo o que toca num sombrio desejo, numa “avidez subterrânea e delirante”, explico-me melhor, a própria substância da alma do poeta, enquanto “palavra palpável e despótica”.

 

Uma nota sobre esta versão do poema ao português: trata-se de uma tradução por mim elaborada a partir da redação contida no ‘link’ apresentado mais abaixo, no campo “Referência”. Digo isto porque, aparentemente, o Nobel mexicano, em publicações posteriores, empreendeu retoques ao poema para levá-lo a um estado que, suponho, lhe fosse de maior agrado.

 

J.A.R. – H.C.

 

Octavio Paz

(1914-1998)

 

La Poesía

 

¿Por qué tocas mi pecho nuevamente?

Llegas, silenciosa, secreta, armada,

tal los guerreros a una ciudad dormida;

quemas mi lengua con tus labios, pulpo,

y despiertas los furores, los goces,

y esta angustia sin fin

que lo que toca enciende

y engendra en cada cosa

una avidez sombría.

 

El mundo cede y se desploma

como metal al fuego.

Entre mis ruinas me levanto

y quedo frente a ti,

solo, desnudo, despojado,

sobre la roca inmensa del silencio,

como un solitario combatiente

contra invisibles huestes.

 

Verdad abrasadora,

¿a qué me empujas?

No quiero tu verdad,

tu insensata pregunta.

¿A qué esta lucha estéril?

No es el hombre criatura capaz de contenerte,

avidez que sólo en la sed se sacia,

llama que todos los labios consume,

espíritu que no vive en ninguna forma

mas hace arder todas las formas

con un secreto fuego indestructible.

 

Pero insistes, lágrima escarnecida,

y alzas en mí tu imperio desolado.

 

Subes desde lo más hondo de mí,

desde el centro innombrable de mi ser,

ejército, marea.

Creces, tu sed me ahoga,

expulsando, tiránica,

aquello que no cede

a tu espada frenética.

Ya sólo tú me habitas,

tú, sin nombre, furiosa sustancia,

avidez subterránea, delirante.

 

Golpean mi pecho tus fantasmas,

despiertas a mi tacto,

hielas mi frente

y haces proféticos mis ojos.

 

Percibo el mundo y te toco,

sustancia intocable,

unidad de mi alma y de mi cuerpo,

y contemplo el combate que combato

y mis bodas de tierra.

Nublan mis ojos imágenes opuestas,

y a las mismas imágenes

otras, más profundas, las niegan,

tal un ardiente balbuceo,

aguas que anega un agua más oculta y densa.

(La oscura ola

que nos arranca de la primera ceguera

nace del mismo mar oscuro

en que nace, sombría,

la ola que nos lleva a la tierra:

sus aguas se confunden

y en su tiniebla

quietud y movimiento son lo mismo.)

 

Insiste, vencedora,

porque tan sólo existo porque existes,

y mi boca y mi lengua se formaron

para decir tan sólo tu existencia

y tus secretas sílabas, palabra

impalpable y despótica,

sustancia de mi alma.

 

Eres tan sólo un sueño,

pero en ti sueña el mundo

y su mudez habla con tus palabras.

Rozo, al tocar tu pecho,

la eléctrica frontera de la vida,

la tiniebla de sangre

donde pacta la boca cruel y enamorada,

ávida aún de destruir lo que ama

y revivir lo que destruye,

con el mundo, impasible

y siempre idéntico a sí mismo,

porque no se detiene en ninguna forma

ni se demora sobre lo que engendra.

 

Llévame, solitaria,

llévame entre los sueños;

llévame, madre mía,

despiértame del todo,

hazme soñar tu sueño,

unta mis ojos con aceite,

para que al conocerte, me conozca.

 

Abril 14 y 15 de 1941

 

Amarelo - Vermelho - Azul

(Wassily Kandinsky: artista russo)

 

A Poesia

 

Por que tocas meu peito novamente?

Chegas, silenciosa, secreta, armada,

tal como os guerreiros a uma cidade adormecida;

queimas minha língua com teus lábios, polvo,

e despertas os furores, os gozos

e esta angústia sem fim

que faz arder o que toca,

engendrando em cada coisa

uma avidez sombria.

 

O mundo cede e se desmancha

como metal ao fogo.

Entre minhas ruínas, ergo-me

e ponho-me diante de ti,

sozinho, desnudo, despojado,

sobre a rocha imensa do silêncio,

como um solitário combatente

contra invisíveis hostes.

 

Verdade abrasadora,

para o que me empurras?

Não quero tua verdade,

tua insensata pergunta.

Para que esta luta estéril?

Não é o homem criatura capaz de conter-te,

avidez que só na sede se sacia,

chama a consumir todos os lábios,

espírito que não vive em nenhuma forma,

mas faz arder todas as formas

com um fogo secreto e indestrutível.

 

Porém insistes, lágrima escarnecida,

e eriges em mim o teu desolado império.

 

Sobes desde o mais fundo de mim,

desde o centro inominável de meu ser,

exército, maré.

Cresces, tua sede me afoga,

expulsando, tirânica,

aquilo que não cede

à tua espada frenética.

Agora só tu me habitas,

tu, sem nome, furiosa substância,

avidez subterrânea, delirante.

 

Açoitam meu peito os teus fantasmas,

despertas ao meu toque,

gelas minha fronte

e tornas proféticos os meus olhos.

 

Percebo o mundo e te toco,

substância intocável,

unidade de minha alma e de meu corpo,

e contemplo o combate que combato

e minhas bodas de terra.

Nublam meus olhos imagens opostas,

e, às mesmas imagens,

outras, mais profundas, negam-nas,

qual um ardente balbucio,

águas inundadas por uma água mais oculta e densa.

(A escura onda

que nos arranca da primeira cegueira

nasce do mesmo mar escuro

em que nasce, sombria,

a onda que nos leva à terra:

suas águas se confundem

e, em sua escuridão,

quietude e movimento se assemelham.)

 

Insiste, vencedora,

porque existo tão somente porque existes,

e minha boca e minha língua se formaram

para externar tão apenas a tua existência

e as tuas secretas sílabas, palavra

impalpável e despótica,

substância de minha alma.

 

És tão somente um sonho,

porém em ti sonha o mundo

e sua mudez fala com tuas palavras.

Roço, ao tocar teu peito,

a elétrica fronteira da vida,

a treva de sangue

onde a boca cruel e enamorada,

ávida ainda por destruir o que ama

e por reviver o que destrói,

faz um pacto com o mundo, impassível

e sempre idêntico a si mesmo,

porque não se detém em nenhuma forma

nem se demora sobre o que engendra.

 

Leva-me, solitária,

leva-me entre os sonhos,

leva-me, mãe minha,

desperta-me plenamente,

faz-me sonhar teu sonho,

unta meus olhos com teus óleos,

para que ao conhecer-te, me conheça.

 

14 e 15 de abril de 1941

 

Referência:

 

PAZ, Octavio. La poesía. Letras de México, México D.F., año V, vol. III, n. 9, p. 3, 15 sep. 1941. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 jun. 2024.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Joachim du Bellay - Soneto XXXI

Bellay expressa nestes versos uma espargida nostalgia da pátria e o desejo de retornar à terra natal, um comum sentimento entre os poetas de sua época, conhecidos por compor a Plêiade, grupo literário do século XVI que buscava valorizar a cultura e o idioma franceses: para tanto, coteja a sua jornada à de heróis antigos, como a de Ulysses, em regresso a Ítaca, ou a de Jasão, de volta para casa, depois de haver conquistado o velo de ouro.

 

De fato, a ideia bem ilustra o padrão das jornadas frequentemente narradas na Literatura, a saber, uma sequência de aventuras gloriosas, regressos ao torrão natal, momentos de serenidade em um quotidiano retirado e o atingimento do que se costuma chamar por “sabedoria de vida”.

 

Não deixa de chamar a atenção o contraste entre as imagens pormenorizadas pelo poeta: de um lado, a grandeza de Roma, materializada por arrojados frontões e palácios; de outro, a simplicidade de uma edificação semianônima, em que se destacam a humilde casa, o cercado, a chaminé fumegante e, por extensão, a pequena aldeia campestre. Ou designadamente, para além dos Alpes, o Tibre latino e o Monte Palatino; mas a noroeste, a pequena Liré, a aldeia provinciana na região de Anjou, França!

 

Em síntese: também de simplicidade sustenta-se o coração humano, vale dizer, do afeto, da conexão com a sua história pessoal e das memórias relativas ao lugar de onde se parte para a grande jornada da vida.

 

J.A.R. – H.C.

 

Joachim du Bellay

Gravura de Charles-Etienne Gaucher

(1522-1560)

 

Sonnet XXXI

 

Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage,

Ou comme cestuy-là qui conquit la toison,

Et puis est retourné, plein d’usage et raison,

Vivre entre ses parents le reste de son âge!

 

Quand reverrai-je, hélas, de mon petit village

Fumer la cheminée, et en quelle saison

Reverrai-je le clos de ma pauvre maison,

Qui m’est une province, et beaucoup davantage?

 

Plus me plaît le séjour qu’ont bâti mes aïeux,

Que des palais Romains le front audacieux,

Plus que le marbre dur me plaît l’ardoise fine:

 

Plus mon Loire Gaulois, que le Tibre Latin,

Plus mon petit Liré, que le mont Palatin,

Et plus que l’air marin la doulceur Angevine.

 

Dans: “Les Regrets” (1558)

 

Beaugency, Vale do Loire

(William Turner: pintor inglês)

 

Soneto XXXI

 

Ditoso o que empreendeu de Ulysses a jornada,

Ou como ess’outro que conquistou a tosão

E que após retornou, com mais tino e razão,

A viver entre os seus a vida descuidada.

 

Quando é que hei de rever de minha aldeia amada

O fumo dos casais; do tempo em qual sazão

Hei de sebe rever da mui pobre mansão

Que uma província me é, a que igual não há nada?

 

Mais me apraz o meu lar avoengo, venturoso,

Que de romano paço o frontão audacioso;

Mais que o mármore duro apraz-me a ardósia fina,

 

O meu Loire gaulês, mais que o Tibre latino,

Mais meu pobre Liré que o monte Palatino,

Mais que a brisa marinha a doçura angevina.

 

Em: “As Queixas” (1558)

 

Referência:

 

BELLAY, Joachim du. Sonnet XXXI / Soneto XXXI. Tradução de Guilherme de Almeida. In: ALMEIDA, Guilherme de (Seleção e tradução). Poetas de França. Prefácio de Marcelo Tápia. 5. ed. São Paulo, SP: Babel, 2011. Em francês: p. 30; em português: p. 31.