Jarrell descreve
nestes versos o que se passa na gravura homônima do alemão Albrecht Dürer
(1471-1528), mais abaixo reproduzida para que o leitor possa apreender o inteiro
teor do poema: fala-nos ele da virtude moral do homem – decerto um cavaleiro
cristão – que, tentado pelo demônio e ante a iminência da morte, segue em
frente para confrontar os perigos de uma hipotética batalha.
Faço ver que, na
primeira estrofe do poema, em que se descreve a figura da morte, os pronomes
empregados por Randall oscilam entre os gêneros, haja visto o emprego de termos
que se lhe associam no feminino – “caveira”, “piorra”, afora, é claro, o
próprio vocábulo “morte” –, combinados a outro no masculino – “espantalho”. Assim,
em que pese a figura da morte, na gravura, ser uma representação notoriamente masculina,
para não suscitar ambiguidades no andamento da estância, verti-a toda empregando
o gênero feminino – afinal, trata-se, em última instância, da morte...
Jarrell mostra-se um fiável
observador em sua écfrase, cujas estrofes – repletas de adjetivos, como a
estampa rica em detalhes –, a rigor, não seguem a ordem do título, pois que os
versos fluem com alusões primeiramente à morte, depois ao diabo e, por fim, ao
cavaleiro, em companhia do corcel e do cão de guarda.
A derradeira estância,
por seu turno, traduz o sentido maior que a gravura despertou na mente do falante,
induzindo-o a nos revelar o lado mais idiossincrático do olhar do poeta em relação
a como deve proceder o ser humano, diante da manifesta transitoriedade de sua
vida.
J.A.R. – H.C.
Randall Jarrell
(1914-1965)
The Knight, Death and
the Devil
Cowhorn-crowned,
shockheaded, cornshuck-bearded,
Death is a scarecrow
– his death’s-head a teetotum
That tilts up toward
man confidentially
But trimmed with
adders; ringlet-maned, rope-bridled,
The mare he rides
crops herbs beside a skull.
He holds up, warning,
the crossed cones of time:
Here, narrowing into
now, the Past and Future
Are quicksand.
A hoofed pikeman
trots behind.
His pike’s
claw-hammer mocks – in duplicate, inverted –
The pocked, ribbed,
soaring crescent of his horn.
A scapegoat aged into
a steer; boar-snouted;
His great limp ears
stuck sidelong out in air;
A dewlap bunched at
his breast; a ram’s-horn wound
Beneath each ear; a
spur licked up and out
From the hide of his
forehead; bat-winged, but in bone;
His eye a ring inside
a ring inside a ring
That leers up,
joyless, vile, in meek obscenity –
This is the devil.
Flesh to flesh, he bleats
The herd back to the
pit of being.
In fluted mail; upon
his lance the bush
Of that old fox; a
sheep-dog bounding at his stirrup,
In its eyes the cast
of faithfulness (our help,
Our foolish help);
his dun war-horse pacing
Beneath in strength,
in ceremonious magnificence;
His castle – some man’s
castle – set on every crag:
So, companioned so,
the knight moves through this world.
The fiend moos in
amity, Death mouths, reminding:
He listens in
assurance, has no glance
To spare for them,
but looks past steadily
At – at –
a man’s look
completes itself.
The death of his own
flesh, set up outside him;
The flesh of his own
soul, set up outside him –
Death and the devil,
what are these to him?
His being accuses him
– and yet his face is firm
In resolution, in
absolute persistence;
The folds of smiling
do for steadiness;
The face is its own
fate – a man does what he must –
And the body
underneath it says: I am.
In: “Selected Poems”
(1955)
O Cavaleiro, a Morte
e o Diabo
(Albrecht Dürer:
artista alemão)
O Cavaleiro, a Morte
e o Diabo
Coroada com chifres de
vaca, desgrenhada, a barba que nem tonas de milho,
A morte é um
espantalho – sua caveira uma piorra
Que se inclina
confidencialmente em direção ao homem,
Malgrado os adornos
de víboras; com crina em anéis e rédeas acordoadas;
A égua em que montada
pasta as ervas ao lado de um crânio.
Ela ergue,
advertindo, os cruzados cones da ampulheta do tempo:
Aqui, estreitando-se
no agora, o Passado e o Futuro
São areia movediça.
Um lanceiro ungulado
trota atrás.
O malho de garras de
sua lança – duplicado, ambilátero – troça
Da pustulosa, ranhurada,
ascendente meia-lua de seu corno.
Um bode expiatório avelhentado
num boi; focinho de javali;
Suas grandes e
flácidas orelhas projetadas no ar de ambos os lados;
Uma barbela vincada
em seu peito; um chifre de carneiro em espiral
Sob cada orelha; uma
espora lambida para cima e para fora
Do couro de sua
fronte; com asas de morcego, tão apenas na ossatura;
Seu olho um anel dentro
de um anel, dentro de um anel
Que olha de soslaio,
desalegre, vil, em dócil obscenidade –
Este é o diabo. Carne
ante carne, balindo
O rebanho de volta ao
abismo do ser.
Em estriada cota de
malha; sobre sua lança a cauda
Daquela velha raposa;
um cão pastor a saltar-lhe ao estribo,
Em seus olhos a
expressão da fidelidade (nossa ajuda,
Nossa insensata
ajuda); o pardo cavalo-de-batalha a avançar em marcha
Firme e compassada, com
cerimoniosa magnificência;
Seu castelo – o
castelo de algum homem – assente em cada penhasco:
Destarte, assim
acompanhado, o cavaleiro se move por este mundo.
O demônio muge
amistosamente, a morte vocifera a precatá-lo;
Ele escuta com
certeza, não tem um olhar de sobra
A lhes dispensar, senão
que mira em frente resolutamente
Em direção a – em direção
a –
pleno por si só é o
olhar de um homem.
A morte de sua
própria carne, definida fora dele;
A carne de sua
própria alma, definida fora dele.
A morte e o diabo, o
que são para ele?
Seu ser o exproba –
e, no entanto, seu rosto mantém-se firme
Na resolução, na absoluta
persistência;
As dobras do sorriso
significam constância;
O rosto é o seu
próprio destino – um homem faz o que deve –
E, por baixo dele, o
corpo afirma: Eu sou.
Em: “Poemas
Escolhidos” (1955)
Referência:
JARRELL, Randall. The knight, death and the devil. In: __________. The complete poems. 1st ed. New York, NY: Farrar, Straus and Giroux, 1969. p. 21-22.
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