Já na primeira metade
do século passado, quando redigiu o florilégio “Sentimento do mundo”, publicado
em 1940, Drummond bem notava que o quotidiano estava em franca aceleração, ao
descrever nestes versos um modo de vida que, então, remetia ao passado, no qual
havia tempo para os prazeres mais elementares da vida, como passear com as
crianças em um jardim tranquilo, ouvir o contado dos pássaros, contemplar os
matizes nas paisagens da natureza – e assim por diante.
Esse estilo de vida
mais compassado é também o motivo condutor da primeira narrativa escrita em
francês pelo tcheco Milan Kundera (n. 1929) – “A Lentidão” (1995) –, um pequeno
tomo onde, em meio a reflexões e excertos eróticos – um padrão recorrente na
escrita meio ensaística do autor –, despontam estas duas lucubrações de
interesse, digo melhor, levadas à apreciação do leitor:
Há um vínculo secreto
entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos
uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se
lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente,
seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um
incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se
quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo, ainda está muito próximo
de si.
Na matemática existencial,
essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão
é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é
diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. (KUNDERA, 2011, p. 30-31).
Dessa equação, podemos deduzir diversos corolários, este, por exemplo: nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade; acelera o passo porque quer nos fazer compreender que não deseja mais ser lembrada; que está cansada de si mesma; enjoada de si mesma; que quer soprar a pequena chama trêmula da memória. (KUNDERA, 2011, p. 91-92)
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Lembrança do mundo
antigo
Clara passeava no
jardim com as crianças.
O céu era verde sobre
o gramado,
a água era dourada
sob as pontes,
outros elementos eram
azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil
sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a
relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a
Alemanha, a China, tudo era tranquilo
em redor de Clara.
As crianças olhavam
para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os
olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara
temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de
perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que
custavam a chegar,
nem sempre podia usar
vestido novo. Mas passeava no jardim,
pela manhã!!!
Havia jardins, havia
manhãs naquele tempo!!!
Mulher e criança
sentadas num jardim
(Mary S. Cassatt:
pintora norte-americana)
Referências:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. Lembrança do mundo antigo. In: __________. Sentimento do mundo.
1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. p. 65. (‘Companhia de Bolso’)
KUNDERA, Milan. A
lentidão. Tradução de Maria Luiza Newlands da Silveira e Teresa Bulhões
Carvalho da Fonseca. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011.
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