Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 16 de junho de 2024

Carlos Drummond de Andrade - Lembrança do mundo antigo

Já na primeira metade do século passado, quando redigiu o florilégio “Sentimento do mundo”, publicado em 1940, Drummond bem notava que o quotidiano estava em franca aceleração, ao descrever nestes versos um modo de vida que, então, remetia ao passado, no qual havia tempo para os prazeres mais elementares da vida, como passear com as crianças em um jardim tranquilo, ouvir o contado dos pássaros, contemplar os matizes nas paisagens da natureza – e assim por diante.

 

Esse estilo de vida mais compassado é também o motivo condutor da primeira narrativa escrita em francês pelo tcheco Milan Kundera (n. 1929) – “A Lentidão” (1995) –, um pequeno tomo onde, em meio a reflexões e excertos eróticos – um padrão recorrente na escrita meio ensaística do autor –, despontam estas duas lucubrações de interesse, digo melhor, levadas à apreciação do leitor:


Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo, ainda está muito próximo de si.

Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. (KUNDERA, 2011, p. 30-31).

 

Dessa equação, podemos deduzir diversos corolários, este, por exemplo: nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma. Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao demônio da velocidade; acelera o passo porque quer nos fazer compreender que não deseja mais ser lembrada; que está cansada de si mesma; enjoada de si mesma; que quer soprar a pequena chama trêmula da memória. (KUNDERA, 2011, p. 91-92)

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Lembrança do mundo antigo

 

Clara passeava no jardim com as crianças.

O céu era verde sobre o gramado,

a água era dourada sob as pontes,

outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,

o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,

a menina pisou a relva para pegar um pássaro,

o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo

em redor de Clara.

 

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.

A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.

Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.

Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,

esperava cartas que custavam a chegar,

nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim,

pela manhã!!!

Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

 

Mulher e criança sentadas num jardim

(Mary S. Cassatt: pintora norte-americana)

 

Referências:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Lembrança do mundo antigo. In: __________. Sentimento do mundo. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. p. 65. (‘Companhia de Bolso’)

 

KUNDERA, Milan. A lentidão. Tradução de Maria Luiza Newlands da Silveira e Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011.

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