Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 30 de junho de 2024

Luis de Góngora y Argote - Da Ambição Humana

Uma mariposa a representar a humana ambição, “temerária” e “cega” se desenfreada, deveras irracional quando leva a ações perigosas e a suas contraproducentes consequências: Góngora nos alerta para a importância de ter uma perspectiva mais equilibrada e consciente de nossas aspirações, não as distendendo até as bordas da imprudência.

 

A busca da glória e do êxito a qualquer preço, em contrapartida, tem a sua antípoda na acomodação e no conformismo, geralmente observável em pessoas infensas a qualquer tipo de mudança: diria Aristóteles, com aquele seu apreço ao meio termo, que nem tanto o fogo da sôfrega vaidade a espicaçar temerariamente a vontade, nem tanto a inércia ou o assentimento a um modo de vida sem quaisquer propósitos que façam a diferença para os que estão à nossa volta, reflexo sem desvios de uma autoestima debilitada.

 

J.A.R. – H.C.

 

Luis de Góngora y Argote

Retrato de Diego Velázquez

(1561-1627)

 

De la Ambición Humana

 

Mariposa, no sólo no cobarde,

mas temeraria, fatalmente ciega,

lo que la llama el Fénix aún le niega,

quiere obstinada que a sus alas guarde.

 

Pues en su daño arrepentida tarde,

del esplendor solicitada, llega

a lo que luce, y ambiciosa entrega

su mal vestida pluma a lo que arde.

 

¡Yace gloriosa en la que dulcemente

huesa le ha prevenido abeja breve,

suma felicidad a yerro sumo!

 

No a mi ambición contrario tan luciente,

menos activo, si cuanto más leve,

cenizas la hará, si abrasa el humo.

 

Abra as suas asas

(Jerome White: pintor norte-americano)

 

Da Ambição Humana (*)

 

Mariposa, que além de não covarde

é temerária, fatalmente cega,

isso que a chama à própria Fênix nega,

quer obstinada que suas asas guarde.

 

Pois em seu dano arrependida tarde,

pelo esplendor solicitada, chega

ao que alumia e com ambição entrega

sua mal vestida pluma àquilo que arde.

 

Dorme gloriosa na que docemente

fossa lhe preveniu agulha breve,

suma felicidade a erro sumo!

 

Não a minha ambição claro oponente,

menos ativo, sim, quanto mais leve,

em cinzas a fará, se abrasa o fumo.

 

Nota do Tradutor (Péricles E. S. Ramos):

 

(*). Versos 3-4: não pensa que o fogo a atinja; 5-8: vai à chama e se queima; 11-14: se errou, adquiriu a felicidade da morte; 10: preveniu agulha breve: preparou-lhe a vida breve; 12-14: mas a ambição não tem fogo que a reduza a cinzas. (GÓNGORA Y ARGOTE, 1988, n.r. à p. 81)

 

Referência:

 

GÓNGORA Y ARGOTE, Luis de. De la ambición humana / Da ambição humana. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. In: __________. Poemas de Góngora. Tradução, introdução e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, SP: Art Editora, 1988. Em espanhol: p. 80; em português: p. 81.

sábado, 29 de junho de 2024

Luís Augusto Cassas - o verbo (3)

A palavra sagrada se transforma e assume novas facetas na sociedade contemporânea, novas formas de conexão com o divino, não estando mais confinada aos espaços religiosos tradicionais, agora muito mais influenciados pela esfera material da realidade – digamos assim –, com amplos efeitos sobre a noção de espiritualidade: aliás, há quem albergue a tese de que não há uma conexão necessária entre espiritualidade e deidade, podendo aquela existir sem esta.

 

Talvez se possa avançar ainda um pouco mais no comentário: os versos parecem sugerir uma crítica à comercialização da espiritualidade e à transformação da fé em uma moeda de troca, especificamente quanto ao emprego da metáfora “bolsa de valores do espírito” (perceba-se o propósito de enlace da esfera espiritual ao mercado financeiro), suscitando desse modo a ideia de que as experiências religiosas passaram a ser objeto de compra e de venda, perdendo assim a sua autenticidade e o seu significado.

 

J.A.R. – H.C.

 

Luís Augusto Cassas

(n. 1953)

 

o verbo

 

a palavra sagrada

jorrava nos templos

e derramava

o arco-íris

das bem-aventuranças

 

mas os templos

cansaram

de louvar a criação

e a palavra sagrada

lançou-se do púlpito

 

a bolsa de valores

do espírito

abriu ao povo

as moedas e dons

das transfigurações

 

então o coração

tornou-se o santuário

e Jakin e Bohaz

as hastes do corpo

os pilares

(Deus

havia entrado

na Era de Aquário)

 

(seção 3 de “cintilações:

relatos da fumaça do incenso”)

 

O amor é um verbo

(Inji Elnadi: artista egipto-canadense)

 

Referência:

 

CASSAS, Luís Augusto. o verbo. In: __________. a poesia sou eu: poesia reunida. Vol. 2. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 2012. p. 563-564. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 jun. 2024.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Nicolás Guillén - Balada dos dois avôs

A evocar temas como a ancestralidade, a escravidão nas terras do Caribe e a luta por liberdade, este poema de Guillén retrata as suas memórias em relação aos ascendentes, sombras duais que o acompanham, como reflexos de suas origens meio africanas, meio europeias: de um lado, o avô negro com a sensação de sempre estar morrendo; de outro, o avô branco, a expressar cansaço e desilusões no que diz respeito à marcha da colonização.

 

Diferenças à parte – e não são poucas! –, ao final do poema o falante reúne os avôs – nomeadamente Federico e Facundo –, pondo-os a sonhar e a vaguear juntos, tudo para legar uma mensagem de concórdia às gerações futuras: trata-se de um afã por igualdade, a despeito das diferenças raciais, pois que, sendo humanos, têm eles os seus propósitos de vida, compartilhados em sonhos, lamentos e cânticos.

 

Não se trata, nada obstante, de esquecer as injustiças e os desafios enfrentados pelos povos africanos e seus descendentes, erradicados à força de suas terras e levados a trabalhos forçados em paragens distantes, senão de conhecer o passado, mantendo-se o espírito aberto à conciliação, sem descuidar, evidentemente, do combate a todas as formas ainda remanescentes de preconceito racial – lá como aqui!

 

J.A.R. – H.C.

 

Nicolás Guillén

(1902-1989)

 

Balada de los dos abuelos

 

Sombras que solo yo veo,

me escoltan mis dos abuelos.

Lanza con punta de hueso,

tambor de cuero y madera:

mi abuelo negro.

Gorguera en el cuello ancho,

gris armadura guerrera:

mi abuelo blanco.

Pie desnudo, torso pétreo

los de mi negro;

pupilas de vidrio antártico

las de mi blanco.

 

Africa de selvas humedas

y de gordos gongos sordos...

– ¡Me muero!

(Dice mi abuelo negro).

Aguaprieta de caimanes,

verdes mañanas de cocos...

– ¡Me canso!

(Dice mi abuelo blanco).

Oh velas de amargo viento,

galeón ardiendo en oro...

– ¡Me muero!

(Dice mi abuelo negro).

¡Oh costas de cuello virgen

engañadas de abalorios...!

– ¡Me canso!

(Dice mi abuelo blanco).

¡Oh puro sol repujado,

preso en el aro del trópico;

oh luna redonda y limpia

sobre el sueño de los monos!

 

¡Qué de barcos, qué de barcos!

¡Qué de negros, qué de negros!

¡Qué largo fulgor de cañas!

¡Qué látigo el del negrero!

Piedra de llanto y de sangre,

venas y ojos entreabiertos,

y madrugadas vacías,

y atardeceres de ingenio,

y una gran voz, fuerte voz,

despedazando el silencio.

¡Qué de barcos, qué de barcos,

qué de negros!

 

Sombras que sólo yo veo,

me escoltan mis dos abuelos.

 

Don Federico me grita

y Taita Facundo calla;

los dos en la noche sueñan

y andan, andan.

Yo los junto.

– ¡Federico!

¡Facundo! Los dos se abrazan.

Los dos suspiran. Los dos

las fuertes cabezas alzan;

los dos del mismo tamaño,

bajo las estrellas altas;

los dos del mismo tamaño,

ansia negra y ansia blanca,

los dos del mismo tamaño,

gritan, sueñan, lloran, cantan.

Sueñan, lloran, cantan.

Lloran, cantan.

¡Cantan!

 

Recital do Avô

(William Hemsley: artista inglês)

 

Balada dos dois avôs

 

Sombras que só eu vejo,

me escoltam meus dois avôs.

Lança com ponta de osso,

tambor de couro e madeira:

meu avô negro.

Gorjeira no largo pescoço,

gris armadura guerreira:

meu avô branco.

Pé desnudo, torso pétreo,

os de meu negro;

pupilas de vidro antártico,

as de meu branco.

 

África de selvas úmidas

e de gordos e surdos gongos...

– Estou morrendo!

(Diz meu avô negro).

Charco de caimões,

verdes manhãs de cocos...

– Estou cansado!

(Diz meu avô branco).

Ó velas de amargo vento,

galeão ardendo em ouro...

– Estou morrendo!

(Diz meu avô negro).

Ó costas de colo virgem

iludidas com vidrilhos...!

– Estou cansado!

(Diz meu avô branco).

Ó puro sol cinzelado,

preso ao anel dos trópicos;

ó lua redonda e limpa

sobre o sonho dos monos!

 

Quantos barcos, quantos barcos!

Quantos negros, quantos negros!

Que longo fulgor de canas!

Que látego o do escravagista!

Pedra de pranto e de sangue,

veias e olhos entreabertos,

e madrugadas vazias,

e entardeceres de engenho,

e uma grande voz, forte voz,

despedaçando o silêncio.

Quantos barcos, quantos barcos,

quantos negros!

 

Sombras que só eu vejo,

me escoltam meus dois avôs.

 

Dom Federico grita comigo

e Taita Facundo se cala;

os dois sonham noite adentro

e vagueiam, vagueiam.

Eu os reúno,

  – Federico!

Facundo! Os dois se abraçam.

Os dois suspiram. Os dois

erguem seus crânios robustos;

os dois do mesmo tamanho,

sob as altas estrelas;

os dois do mesmo tamanho,

ânsia negra e ânsia branca;

os dois do mesmo tamanho,

gritam, sonham, choram, cantam.

Sonham, choram, cantam.

Choram, cantam.

Cantam!

 

Referência:

 

GUILLÉN, Nicolás. Balada de los dos abuelos. In: __________. Man-making words. Selected poems of Nicolás Guillén translated, annotated, with an introduction by Robert Márquez and David Arthur McMurray. A bilingual edition: Spanish x English. La Habana, CU: Editorial de Arte y Literatura, 1973. p. 66, 68 y 70.