Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Caetano Lagrasta Neto - quatro estações

O poeta aborda o tema das “quatro estações” não exatamente como costumamos nos defrontar – ou seja, a designar a passagem, ao longo do ano, dos quatro períodos com padrões climáticos bem definidos – primavera, verão, outono e inverno –, senão à luz do quaternário dos elementos fundamentais da natureza: terra, fogo, água e ar.

 

São eles os quatro pilares deste plano de existência, deste mundo natural no qual o homem teima em macular-lhes o mistério e a pureza, consistindo – a julgar pela imagística empregada por Lagrasta – numa representação dual tanto da criação e da vida quanto da destruição e da morte – ou até bem mais do que isso, pois que também traduziriam um certo simbolismo hermético, irredutível aos parâmetros da linguagem, ao universo das palavras.

 

J.A.R. – H.C.

 

Caetano Lagrasta Neto

(n. 1943)

 

quatro estações

 

de quatro elementos

extrair se pensa universo terra

fogo água ar

não fosse homem

a macular mistério

 

terra tudo que pisamos

de onde brotam flores

onde brotamos

dias a gastar

no enterrar

mortos

 

fogo segredando divindade

sacrifício de sangue

a troco do saber

pecado

fogo apaga rastros

 

mata

água de barcos à deriva

de deus até que o diabo enxergue

no silêncio de ilhas escondido ar

 

brisa sem pressa de engano

prenuncio de chuva que invade casa e cômodo

assobio sem par no sufoco de pios

pássaros desmanchados em nuvem

 

tempestade funda cidades

desfeitas em pó

pegadas eternas

do retorno à semente

 

definições as há

e quantas!

mas prefiro estas no impossível

que emoldura

e trai

 

Onda Cósmica

(Johnny Maggard: artista norte-americano)

 

Referência:

 

LAGRASTA, Caetano. quatro estações. In: __________. livro de horas: poema. São Paulo, SP: Ed. do Autor, 2004. p. 32-33.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Mark Irwin - Os Chapéus de Meu Pai

Eis aqui um belo poema a tratar das recordações, da relação entre pais e filhos, das sensações nostálgicas da infância e da conexão emocional pela via do simbolismo de alguns objetos – no presente caso, os chapéus usados pelo genitor do falante, sempre guardados na parte de cima de seu armário –, os quais podem servir como portas de entrada para intensas experiências emocionais.

 

Ao evocar as renitentes conexões, quer em relação à figura paterna quer, por associação, em relação à natureza, o poeta emprega imagens vívidas e detalhes sensoriais, recorrendo, até mesmo, a referentes sagrados implicados numa atmosfera de ausência (pois que, ao aludir ao “sono fabuloso” do pai, muito provavelmente se reporte ao seu passamento).

 

J.A.R. – H.C.

 

Mark Irwin

(n. 1953)

 

My Father’s Hats

 

Sunday mornings I would reach

high into his dark closet while standing

on a chair and tiptoeing reach

higher, touching, sometimes fumbling

the soft crowns and imagine

I was in a forest, wind hymning

through pines, where the musky scent

of rain clinging to damp earth was

his scent I loved, lingering on

bands, leather, and on the inner silk

crowns where I would smell his

hair and almost think I was being

held, or climbing a tree, touching

the yellow fruit, leaves whose scent

was that of clove in the godsome

air, as now, thinking of his fabulous

sleep, I stand on this canyon floor

and watch light slowly close

on water I can’t be sure is there.

 

Homem com o chapéu

(Fernando Amorsolo y Cueto: artista filipino)

 

Os Chapéus de Meu Pai

 

Nas manhãs de domingo, eu alcançava

o topo do seu armário escuro servindo-me

de uma cadeira e, na ponta dos pés, chegava

mais alto, tocando, por vezes tateando

as copas macias, imaginando

encontrar-me num bosque, com o vento a ressoar

entre os pinheiros, onde o olor almiscarado

da chuva, agarrado à terra úmida, semelhava-se

ao perfume dele de que tanto gostava, renitente

nas fitas, no couro, nos remates internos

de seda, nos quais podia sentir o cheiro do seus

cabelos e quase pensava estar sendo por ele sustentado,

ou escalando uma árvore, tocando-lhe

os frutos amarelos, as folhas cujo aroma

recendia a cravo numa divina

atmosfera, como agora, ao refletir sobre o seu sono

fabuloso, mantendo-me de pé neste leito de cânion

a observar a luz se fechar lentamente

sobre a água, da qual não posso ter certeza se lá está.

 

Referência:

 

IRWIN, Mark. My father’s hats. In: COLLINS, Billy (Sel. & Int.). Poetry 180: a turn back to poetry. An anthology of contemporary poems. New York, NY: Random House, 2003. p. 202.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Lucian Blaga - Eu não piso a corola de milagres do mundo

Uma atitude de contemplação e de aceitação em relação à beleza, à complexidade e aos mistérios do mundo avulta nas linhas deste poema: delas se depreende que não devemos destruir ou subtrair a magia que há em nossas veredas, para que, desse modo, possamos preservar intacta a “corola” do que nos encanta, surpreende, maravilha, sem necessidade, por conseguinte, de desvelar-lhe e compreender-lhe os segredos pela via de uma contumaz atividade mental.

 

Tudo é mistério, enigma e milagre, o incompreensível a cobrir o vasto espectro da vida e da morte, seja nas flores, nos olhos, nos lábios ou nos túmulos: enquanto a luz dos outros sufoca o encanto do desconhecido, oculto nas profundezas da escuridão, o poeta, pelo contrário, procura aumentar o mistério do mundo por meio de sua própria luz.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lucian Blaga

(1895-1961)

 

Eu nu strivesc corola de minuni a lumii

 

Eu nu strivesc corola de minuni a lumii

şi nu ucid

cu mintea tainele, ce le-ntâlnesc

în calea mea

în flori, în ochi, pe buze ori morminte.

Lumina altora

sugrumă vraja nepătrunsului ascuns

în adâncimi de întuneric,

dar eu,

eu cu lumina mea sporesc a lumii taină -

şi-ntocmai cum cu razele ei albe luna

nu micşorează, ci tremurătoare

măreşte şi mai tare taina nopţii,

aşa îmbogăţesc şi eu întunecata zare

cu largi fiori de sfânt mister

şi tot ce-i neînţeles

se schimbă-n neînţelesuri şi mai mari

sub ochii mei –

căci eu iubesc

şi flori şi ochi şi buze şi morminte.

 

(1919)

 

Caminhada matinal pela floresta

(Shelly Du: artista australiana)

 

Eu não piso a corola de milagres do mundo

 

Eu não piso a corola de milagres do mundo

e não mato

com a mente os mistérios que encontro

em meu caminho

nas flores, nos olhos, nas bocas ou nas campas.

A luz de outros

sufoca o encanto do impenetrável escondido

nas profundezas de trevas,

mas eu,

eu com minha luz acrescento ao mistério do mundo

e exatamente como com seus brancos raios a lua

não míngua mas, trêmula,

aumenta ainda mais o mistério da noite.

assim enriqueço também eu o horizonte das trevas

com amplos calafrios de santos segredos,

e todo o incompreendido

muda -se em incompreensões ainda maiores

sob meus olhos –

pois eu amo

tantas folhas quantos olhos, tantas bocas quantas campas.

 

(1919)

 

Referência:

 

BLAGA, Lucian. Eu nu strivesc corola de minuni a lumii / Eu não piso a corola de milagres do mundo. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. In: __________. A grande travessia. Seleção, tradução e introdução de Caetano Waldrigues Galindo. Brasília, DF: Editora da UnB, 2005. Em romeno: p. 100; em português: p. 101. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)

domingo, 23 de junho de 2024

Jaime Gil de Biedma - Arte Poética

De um poeta a outro, versos que se dedicam a falar do seu próprio ofício, ou melhor, das “substâncias” que tomam parte no rol de palavras a compor um poema – palavras sobre outras palavras, inclusive, trocadas em conversas familiares prévias, ainda com suficiente poder para ensejar efeitos sobre os que as evocam nos dias presentes.

 

O falante discorre sobre a vida, o tempo, a importância das coisas simples e das relações interpessoais, ou ainda, sobre o desejo maior de se conectar com o mundo, ânsia por vínculos e intimidades – ainda que a realidade possa apresentar desenlaces desafiadores –, passando de momentos usufruídos reservadamente a outros que comportem proximidade com entes queridos e distantes.

 

De esperanças e de expectativas que muitas vezes não se concretizam estão pejados os nossos dias, também de nostalgias e de imagens vívidas: todos esses ingredientes bem podem compor um férvido cadinho de onde a poesia se evola à atmosfera ao nosso redor, renovando-nos o ânimo para outras tantas conjunturas significativas – experiências, tentativas, aprendizagens.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jaime Gil de Biedma

(1929-1990)

 

Arte Poética

 

A Vicente Aleixandre

 

La nostalgia del sol en los terrados,

en el muro color paloma de cemento

– sin embargo tan vívido – y el frío

repentino que casi sobrecoge.

 

La dulzura, el calor de los labios a solas

en medio de la calle familiar

igual que un gran salón, donde acudieran

multitudes lejanas como seres queridos.

 

Y sobre todo el vértigo del tiempo,

el gran boquete abriéndose hacia dentro del alma

mientras arriba sobrenadan promesas

que desmayan, lo mismo que si espumas.

 

Es sin duda el momento de pensar

que el hecho de estar vivo exige algo,

acaso heroicidades – o basta, simplemente,

alguna humilde cosa común

 

cuya corteza de materia terrestre

tratar entre los dedos, con un poco de fe?

Palabras, por ejemplo.

Palabras de familia gastadas tibiamente.

 

En: “Compañeros de viaje” (1959)

 

Sob o sol da primavera

em frente à casa da família

(Jens Birkholm: pintor dinamarquês)

 

Arte Poética

 

A Vicente Aleixandre

 

A nostalgia do sol nos terraços,

na parede cor de pomba de cimento

– no entanto, tão vívida – e o frio

repentino que quase surpreende.

 

A doçura, o calor dos lábios a sós

no meio da rua familiar,

feito um grande salão, para onde acorreram

multidões distantes como entes queridos.

 

E, acima de tudo, a voragem do tempo,

a grande fenda que se abre até dentro da alma,

enquanto no alto sobrenadam promessas

que se desvanecem, como se espumas fossem.

 

É, sem dúvida, o momento de pensar

que o fato de estar vivo exige algo,

talvez atos heroicos – ou bastaria, simplesmente,

alguma coisa humilde e comum,

 

cuja crosta de matéria terrestre se possa tratar

entre os dedos, com um pouco de fé?

Palavras, por exemplo.

Palavras de família tenuemente desgastadas.

 

Em: “Companheiros de viagem” (1959)

 

Referência:

 

BIEDMA, Jaime Gil. Arte poética. In: __________. Jaime Gil de Biedma. Selección y nota de Eduardo Vázquez. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), 2012. p. 9. Disponível neste endereço. Acesso em: 18 jun. 2024.