Rio é qualquer
mudança que nos sobrevém no curso da vida, a refletir a heraclitiana
impermanência do mundo fenomênico, diante do qual só nos cabe desbravá-lo lançando
mão de um “simples remo”, dando “forma ao nosso sonho de asas”, permitindo-nos
assim atravessá-lo sem nos manter subjugados à vã pretensão de, pelo
pensamento, imobilizar coisas essencialmente fluidas.
A “flor” – provável alegoria
associada às realizações com potencial para tornar uma vida significativa e com
sentido – mantém-se na margem oposta, como que a sinalizar o rumo a ser seguido
pelos nautas, sem risco de descaminhos: sejamos como Ulisses a fugir das sereias
– sem caudas de peixe, mas com asas de pássaro –, sempre desenvoltas em fascinar
e extraviar os mortais!
J.A.R. – H.C.
Sidnei Schneider
(n. 1960)
De como lidar com rio
Represar um rio é impossível.
O rio insulta a
barragem.
Se sustém uma folha
calma de lago,
amplia suas pernas de
Heráclito.
Veloz, recortará
efígies das escarpas
e nas curvas fará
ondas de mar.
Mas se segue da
nascente à foz,
na outra margem é que
está a flor.
Não é pisando em
peixes
que conseguiremos
atravessá-lo.
Largo, pinguela nele
não cabe,
ponte não nos dará
conhecê-lo.
Não seria sábio
auscultar
o diário vaivém dos
pássaros?
Com os braços dar forma
ao nosso sonho de
asas?
De dentro domá-lo
para sempre
com um simples remo.
Em: “Plano de
Navegação” (1999)
Atravessando o rio
(Tyl Destoop: artista
belga)
Referência:
SCHNEIDER, Sidnei. De como lidar com rio. In: VASQUES, Marco (Seleção e Organização). Moradas de Orfeu: antologia poética. Apresentação de Péricles Prade. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas, 2011. p. 379.
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