Como se poderia
metaforizar a morte – talvez não num sentido exatamente físico, senão pelo olvido
ou pela decadência –, em franco movimento de aproximação, para alguém que, como
a poetisa, incorpora o espírito fecundo de uma infante, a quem são prescritas
impertinentes regras de comedimento?!
Deserto, um branco
indiferente e cruel, combinando com neve e mortalha, mas também com leite
manando do seio – a saciar a fome e o desejo –, isto porque a morte, segundo a falante,
seria a “única mãe”: o rio aparenta estar secando e o epigrafado édito sugere “aceitar
a perda”, denotando, por conseguinte, um impulso mais para capitular do que
para resistir.
J.A.R. – H.C.
Eduarda Chiote
(n. 1930)
Aceitar a Perda
Estou a morrer e
ninguém me diz se por desuso
ou educado
esquecimento.
Para onde, em segredo
deserto.
Ouve: quem sou?
O que é um poeta? Uma
criança,
filha
da rima
a quem se diz não
fales com a boca cheia? Tira os cotovelos
de cima da mesa?
Tantas palavras.
Muitas são as que não distingo.
Branco,
por exemplo.
Embora escute branco
como a neve,
uma mortalha,
o leite: Acaso,
branca, a fome masculina
do teu seio
também? – Pensava que
o desejo era branco.
Mas branco, branco,
terrivelmente branco,
apenas o olhar
que vendo se vê
demasiado
e em pura crueldade
e indiferença,
ó morte – única mãe.
Velhas Memórias
(Laura Gomez: artista
mexicana)
Referência:
CHIOTE, Eduarda.
Aceitar a perda. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização,
introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa
do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT:
Porto Editora, 2009. p. 1585.
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