Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 4 de junho de 2023

Agostinho Neto - Crueldade

A síntese emblemática deste poema do médico, escritor e político angolano concentra-se na veemência da terceira estrofe – um sem-motivo para as detenções descabidas e infundadas no bairro negro de Sambizanga, em Luanda, e que todos podem facilmente deduzir tratar-se de mais um episódio de banalização do preconceito, por parte das forças de repressão.

 

O sentido de denúncia e de injustiça atravessa grande parte da obra do poeta, revelando um potencial transformador para os que se veem oprimidos diante de uma realidade de desigualdades, a exemplo dos milhões que, lá como aqui, são deslocados às franjas citadinas, digo melhor, ao ‘locus’ ostensivo da segregação socioeconômica – os bolsões de pobreza integrados por favelas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Agostinho Neto

(1922-1979)

 

Crueldade

 

Caíram todos na armadilha

dos homens postados

à esquina

 

E de repente

no bairro acabou o baile

e as faces endureceram na noite

 

Todos perguntam por que foram presos

ninguém o sabe

e todos o sabem afinal

 

E ficou o silêncio

dum óbito sem gritos

que as mulheres agora choram

 

Em corações alarmados

segredam místicas razões

 

Da cidade iluminada

vêm gargalhadas

numa displicência cruel

 

Para banalizar um acontecimento

quotidiano

vindo no silêncio da noite

do musseque Sambizanga (*)

– um bairro de pretos!

 

Desumanização

(Gérard DuBois: ilustrador francês)

 

Nota:

 

(*). Musseque: palavra derivada do idioma local “kimbundu” para denominar a terra com tons vermelhos; por derivação, passou a designar os bairros periféricos suburbanizados de Luanda ou de outras cidades de Angola.  

 

Referência:

 

AGOSTINHO NETO, António. Crueldade. In: __________. Sagrada esperança: poemas. Edição Especial. Lisboa, PT: Sá da Costa Editora; União dos Escritores Angolanos, nov. 1979. p. 49.

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