A síntese emblemática
deste poema do médico, escritor e político angolano concentra-se na veemência
da terceira estrofe – um sem-motivo para as detenções descabidas e infundadas no
bairro negro de Sambizanga, em Luanda, e que todos podem facilmente deduzir tratar-se
de mais um episódio de banalização do preconceito, por parte das forças de
repressão.
O sentido de denúncia
e de injustiça atravessa grande parte da obra do poeta, revelando um potencial
transformador para os que se veem oprimidos diante de uma realidade de
desigualdades, a exemplo dos milhões que, lá como aqui, são deslocados às
franjas citadinas, digo melhor, ao ‘locus’ ostensivo da segregação socioeconômica
– os bolsões de pobreza integrados por favelas.
J.A.R. – H.C.
Agostinho Neto
(1922-1979)
Crueldade
Caíram todos na
armadilha
dos homens postados
à esquina
E de repente
no bairro acabou o
baile
e as faces
endureceram na noite
Todos perguntam por
que foram presos
ninguém o sabe
e todos o sabem afinal
E ficou o silêncio
dum óbito sem gritos
que as mulheres agora
choram
Em corações alarmados
segredam místicas
razões
Da cidade iluminada
vêm gargalhadas
numa displicência
cruel
Para banalizar um
acontecimento
quotidiano
vindo no silêncio da noite
do musseque Sambizanga
(*)
– um bairro de
pretos!
Desumanização
(Gérard DuBois:
ilustrador francês)
Nota:
(*). Musseque: palavra derivada do idioma local “kimbundu” para denominar
a terra com tons vermelhos; por derivação, passou a designar os bairros
periféricos suburbanizados de Luanda ou de outras cidades de Angola.
Referência:
AGOSTINHO NETO, António. Crueldade. In: __________. Sagrada esperança: poemas. Edição Especial. Lisboa, PT: Sá da Costa Editora; União dos Escritores Angolanos, nov. 1979. p. 49.
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