Moer e cortar afanosamente o tempo são encargos de um relógio, no transcurso das noites que o poeta, num sono permeado por imagens a memorar bosques e herdades, adormece com sua amada: de um simples objeto do cotidiano, Neruda transpõe realidades que bem ilustram o transitório e o contingente na natureza e, por extensão, no existir humano.
Naquilo que excisa o tempo, o relógio faz pender os “minutos como folhas, fibras de tempo partido, pequenas e negras penas”. Por que será que, diante de um relógio, sentimo-nos como se um quinhão de nossa liberdade houvesse sido arrestado, parte de nós mesmos migrado para terras ignotas, de onde jamais empreenderiam viagem de volta?! Sugestão de leitura sobre tema correlato: “A Lentidão”, romance-ensaio do tcheco Milan Kundera.
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda
(1904-1973)
Oda a un Reloj en la Noche
En la noche, en tu mano
brilló como luciérnaga
mi reloj.
Oí
su cuerda:
como un susurro seco
salía
de tu mano invisible.
Tu mano entonces
volvió a mi pecho oscuro
a recoger mi sueño y su latido.
El reloj
siguió cortando el tiempo
con su pequeña sierra.
Como en un bosque
caen
fragmentos de madera,
mínimas gotas, trozos
de ramajes o nidos,
sin que cambie el silencio,
sin que la fresca oscuridad termine,
así
siguió el reloj cortando
desde tu mano invisible,
tiempo, tiempo,
y cayeron
minutos como hojas,
fibras de tiempo roto,
pequeñas plumas negras.
Como en el bosque
olíamos raíces,
el agua en algún sitio desprendía
una gotera gruesa
como una uva mojada.
Un pequeño molino
molía noche,
la sombra susurraba
cayendo de tu mano
y llenaba la tierra.
Polvo,
tierra, distancia
molía y molía
mi reloj en la noche,
desde tu mano.
Yo puse
mi brazo
bajo tu cuello invisible,
bajo su peso tibio,
y en mi mano
cayó el tiempo,
la noche,
pequeños ruidos
de madera y de bosque,
de noche dividida,
de fragmentos de sombra,
de agua que cae y cae:
entonces cayó el sueño
desde el reloj y desde
tus dos manos dormidas,
cayó como agua oscura
de los bosques,
del reloj
a tu cuerpo,
de ti hacia los países,
agua oscura,
tiempo que cae
y corre
adentro de nosotros.
Y así fue aquella noche,
sombra y espacio, tierra
y tiempo,
algo que corre y cae
y pasa.
Y así todas las noches
van por la tierra,
no dejan sino un vago
aroma negro,
cae una hoja,
una gota
en la tierra
apaga su sonido,
duerme el bosque, las aguas,
las praderas,
las campanas,
los ojos.
Te oigo y respiras,
amor mío,
dormimos.
Relógio Antigo
(Anatoly Baratynsky: pintor russo)
Ode a um Relógio na Noite
Na noite, em tua mão
brilhou feito um vaga-lume
o meu relógio.
Ouvi
a sua corda:
como um seco sussurro
saía
de tua mão invisível.
Tua mão então
retornou-me ao peito escuro
para recolher meu sono e o seu pulsar.
O relógio
seguiu a cortar o tempo
com sua pequena serra.
Como em um bosque
caem
fragmentos de madeira,
mínimas gotas, pedaços
de galhos ou ninhos,
sem que se perturbe o silêncio,
sem que a fria escuridão termine,
assim
seguiu o relógio a cortar,
desde a tua invisível mão,
o tempo, o tempo,
e caíram
minutos como folhas,
fibras de tempo partido,
pequenas e negras penas.
Uma vez que no bosque
sentíamos o olor das raízes,
a água em algum lugar desprendia
um denso gotejar
como uma uva molhada.
Uma pequena azenha
moía à noite,
a sombra sussurrava
caindo de tua mão
e enchia a terra.
Pó,
terra, distância
moía e moía
meu relógio na noite,
a partir da tua mão.
Pus
meu braço
sob teu colo invisível,
sob o calor do seu peso,
e em minha mão
caiu o tempo,
a noite,
pequenos ruídos
de madeira e de bosque,
de noite dividida,
de fragmentos de sombra,
de água que cai e cai:
então o sono caiu
a partir do relógio e de
tuas mãos adormecidas,
caiu como água escura
dos bosques,
do relógio
para o teu corpo,
de ti até os países,
água escura,
tempo que cai
e corre
por dentro de nós.
E assim foi aquela noite,
sombra e espaço, terra
e tempo,
algo que corre e cai
e passa.
Assim é que se passam
todas as noites sobre a terra,
não deixam senão um vago
aroma negro,
cai uma folha,
uma gota
na terra
apaga o seu som,
adormece o bosque, as águas,
as pradarias,
os sinos,
os olhos.
Ouço-te e respiras,
amor meu,
dormimos.
Referência:
NERUDA, Pablo. Ode a un reloj en la
noche. In: __________. Selected odes of Pablo Neruda. Translated, with
an introduction by Margaret Sayers Peden. A bilingual edition: Spanish x
English. Berkeley, CA: University of California Press, 1990. p. 120, 122, 124
and 126.
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